Lições Sobre a Cura do Sofrimento, na Carta 47
Joana Maria Ferreira de Pinho
Cabe refletir sobre a dinâmica do conhecimento e da ética. Como vemos no texto “A Autocrítica de Helena Blavatsky”, para cada conhecimento há um dever correspondente. [1]
É útil examinar o tema através do estudo reflexivo da Carta 47, de “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”.[2] Com o estudo teosófico vamos ao encontro da verdadeira natureza. O autoconhecimento permite atravessar o véu e ir além da casca que esconde e serve a noz. Ao longo da vida individual, vamos criando uma série de ilusões sobre o que somos e o propósito da nossa existência, e confundimos muitas das futilidades da imaginação humana com conhecimento e dever.
Paralisados num círculo que gira exclusivamente à sua volta, alguns peregrinos fixam-se em seus caprichos individuais e deixam-se levar por um movimento ilusório que apenas conduz ao ponto de partida: o sofrimento humano. É de grande utilidade para todos os estudantes meditar regularmente nas seguintes palavras de um Mahatma:
“…O que é o ‘eu’? Só um hóspede passageiro, cujas preocupações são todas como uma miragem no grande deserto…” [3]
Sabemos que nem sempre o homem externo reflete o ser interno. Nosso esforço deve também passar por desenvolvermos uma maior coerência entre os vários aspectos da natureza humana. No entanto, aceitar as limitações do homem externo com tranquilidade e otimismo e focar a atenção no ser interno são algumas das chaves não só para a paz interior como também para o cultivo de uma sociedade justa e fraterna.
Temos nas relações humanas oportunidades alquímicas. Ao estabelecermos laços saudáveis com as pessoas transformamos as correntes de chumbo em fios de ouro. As relações deixam de ser amarras que nos prendem de forma cega uns aos outros e passam a ser ligas luminosas que nos unem para avançarmos em conjunto rumo ao belo e ao verdadeiro.
Aprendemos uns com os outros, transmutamos uns aos outros e crescemos juntos. Quando a importância dada à casca se desloca para a noz são criados padrões saudáveis de convívio e de cooperação, e é através deles que se regenera, não só uma casa, um grupo de trabalho ou uma família, mas toda a raça humana e todo o planeta.
A Carta 47 indica as causas do sofrimento humano. Nela podemos ler:
“Olhe ao seu redor, meu amigo: veja os ‘três venenos’ devastando o coração dos homens – o ódio, a cobiça e a ilusão; e as cinco escuridões: a inveja, a paixão, a hesitação, a preguiça e a descrença, sempre impedindo-os de ver a verdade. Eles nunca se verão livres da poluição dos seus corações vaidosos e maldosos, nem perceberão a parte espiritual que há neles mesmos. Irá você tentar – para diminuir a distância entre nós – libertar-se da rede da vida e da morte em que todos eles estão presos (…..) ?”
Diminuir a distância entre o estudante e a fonte de inspiração elevada é aproximar o peregrino da verdade – e esse é o caminho da bem-aventurança. Todo veneno tem um antídoto e “toda escuridão é o ponto inicial do amanhecer”, como afirma Carlos em um artigo.[4] Assim, podemos vencer o ódio através do amor, a cobiça através da gratidão, e a ilusão através da união com o ser interno. Restabelecendo estas funções vitais chega o amanhecer e a escuridão dá seu lugar à luz. A inveja transforma-se em generosidade, a paixão em calma, a hesitação em firmeza, a preguiça em serviço e a descrença em esperança.
Na Carta 47, o Mahatma afirma que “o mundo das planícies é antagônico ao das montanhas…” É no eu espiritual que se encontram as mais puras intenções. Devemos dirigir nossas forças para o alto e agir através da natureza elevada.
Nossas ações geram uma série de nidanas. Não é possível acabar com os efeitos das causas que colocamos em movimento sem que outras causas no sentido oposto tenham lugar. Se queremos que a nossa atividade seja produtiva e luminosa devemos fazer um esforço extra para focar as energias no ótimo e abandonar as ações automáticas e egoístas. São elas que nos afastam do ensinamento e atrasam o desenvolvimento da fraternidade universal. Esforcemo-nos então para conhecer nossa natureza, para dominar amorosamente aquele eu que age como se o mundo girasse à sua volta. Devemos ter sempre presente que cada ação terá uma consequência não só para nós mesmos mas para o Todo que somos. Que possamos desenvolver nossa atividade ajudando Aqueles que guiam a humanidade no sentido do despertar.
Alguns estudantes julgam que a leitura e o papaguear das várias obras trazem o conhecimento. A cura não ocorre pela simples leitura de um receituário. Esses teosofistas ingênuos esquecem que saber e dever andam juntos e se complementam. O dever não pode ser desenvolvido corretamente sem o devido conhecimento e o “conhecimento” não é nada mais do que uma coleção de frases bonitas quando o estudante se abstém de praticar o que lê.
A aproximação interna aos Mestres, ao seu ensinamento e esforço exige responsabilidade. É preciso que nos entreguemos ao processo de autopurificação e que nossa vontade seja reforçada a cada momento. Um Mestre de Sabedoria escreveu:
“Posso aproximar-me de você, mas você deve atrair-me mediante um coração purificado e uma vontade que se desenvolve gradualmente. Como a agulha da bússola, o adepto segue as suas atrações.” [5]
O alcance do trabalho que cada grupo teosófico desenvolve depende do esforço de seus integrantes. Os colegas de trabalho voluntário formam um único organismo. Daí o lema “Um Por Todos e Todos Por Um” estar sempre presente entre os membros da Loja Independente de Teosofistas.
O Amor pela humanidade e a perseverança são forças que nos colocam no caminho da sabedoria, e é através delas que nos tornamos operários na grande obra. O Mahatma que escreveu a Carta 47 esclarece:
“[Um Mestre] expressou-se bem e com toda a verdade quando disse que um amor por toda a humanidade é a crescente inspiração dele, e que se qualquer pessoa desejar atrair sua atenção, deverá vencer a tendência dispersiva com uma força mais vigorosa do que ela.”
As verdadeiras aspirações residem no eu interno. Mas não devemos desprezar as várias dimensões do ser. Todas elas compõem o templo da verdade. O lar não é feito apenas de tijolo ou de espírito. O sagrado está em tudo e em todos. O estudante que tenta aniquilar os aspectos terrenos de sua vida deveria meditar nas seguintes palavras:
“Aí embaixo está o seu campo de ação e de utilidade (…).” [6]
Por vezes falhamos na tentativa de expressar a natureza espiritual. Contudo, não há motivo para desânimo. Nosso maior dever é fazer melhor hoje do que fizemos ontem e cada esforço em direção à verdade reduz a dor criada pela escuridão. Cada tentativa de avançar fortalece os passos dos peregrinos e cada avanço, por menor que seja, aproxima-nos da bem-aventurança. Ser perseverante ajuda no progresso, mas é através da pureza que a maior magia acontece. A mesma Carta esclarece:
“A Natureza uniu todas as partes do seu Império por meio de fios sutis de simpatia magnética, e há uma relação mútua até mesmo entre uma estrela e o homem; o pensamento corre mais rápido do que o fluido elétrico, e o seu pensamento irá encontrar-me caso seja projetado com um impulso puro (….). Nossa lei manda aproximar-nos de todo aquele que tenha dentro de si ainda que só o mais leve lampejo da verdadeira luz do ‘Tathagata’ (….).”
A dinâmica entre os membros de um grupo teosófico – cujo foco está no ensinamento – é acima de tudo um campo de aprendizagem e por isso de provação. Devemos ver com naturalidade as possíveis discordâncias. Se elas existem na esfera individual (porque nem sempre alguém está satisfeito consigo mesmo) seria infantil pensarmos que esse tipo de dificuldade não ocorre no campo coletivo. E a melhor forma de lidarmos com as dificuldades é focando o coração no ótimo. A prática da humildade, da gratidão e do desapego são ferramentas essenciais no caminho do autoaperfeiçoamento. Como um Mahatma escreveu sobre o movimento teosófico e seus membros:
“Aqueles que estão sadios não necessitam de médico, mas sim os que estão doentes (…).” [7]
Todos chegam até aqui debilitados e a Teosofia aponta para a cura. Através do trabalho pelo bem da humanidade e movidos pelo amor à grande família humana, a doença transforma-se em saúde, a escuridão em luz e o sofrimento em virtude.
Nossa proteção está na alegria e na confiança que brotam do cultivo da boa vontade. Se estamos juntos nesta viagem será certamente para nos apoiarmos uns nos outros e evoluirmos em conjunto.
NOTAS:
[1] O texto “A Autocrítica de Helena Blavatsky”, de Carlos Cardoso Aveline, está disponível em nossos websites associados.
[2] “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Vol. I, Editora Teosófica, Brasília, 2001, pp. 214-219.
[3] “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Carta 47, Vol. I, p. 214.
[4] Do texto “Desfazendo Impressões Erradas”, de Carlos Cardoso Aveline. O artigo está disponível em nossos websites associados.
[5] “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Carta 47, Vol. I, p. 216.
[6] Palavras de um Mahatma, reproduzidas da Carta 47, “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Vol. I, p. 217.
[7] “Cartas dos Mahatmas Para A.P. Sinnett”, Carta 47, Vol. I, p. 218.
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Uma versão inicial do artigo acima foi publicada na edição de dezembro de 2014 de “O Teosofista”.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
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