A Bem-Aventurança Ocorre
No Nível da Consciência Universal
The Theosophical Movement
O verdadeiro contentamento não depende de fatos externos
O capítulo dois do “Bhagavad Gita” [1] diz que quem está firmemente estabelecido no conhecimento espiritual sente-se “feliz e contente no eu superior, e através do eu superior”.
De que modo alguém pode estar feliz e contente “no eu superior”? E o que significa “através do eu superior”?
Uma coisa é certa: ninguém que tenha ideais e um pouco de imaginação pode estar feliz e contente apenas no plano da sua personalidade, ou eu inferior. A personalidade se sente ferida, sofre, fica frustrada, e assim por diante. Ela tem aspirações deste ou daquele tipo, e não está contente com tudo o que acontece. Portanto, a felicidade e o contentamento vêm de algo em nós que não é alterado pela personalidade.
Podemos chamar este “algo” de Manas [Mente]. Não se trata de Buddhi-Manas [Mente Espiritual] nem de Kama-Manas [Mente Emocional], mas daquela consciência ou atenção em nós que é capaz de analisar a vida e de estar em paz consigo mesma, podendo compreender o que ocorre à sua volta e também no interior dos seus processos de emoção, de desejo, etc., sem que, por isso, seja carregada ou absorvida por eles. Essa consciência se baseia em premissas claras.
O “Bhagavad Gita” explica como é o ser humano que alcançou o conhecimento espiritual. Nós não temos este conhecimento hoje, porque nosso saber é baseado em uma visão intelectual das coisas. Ele se apoia nas nossas ideias pré-concebidas e nas nossas limitações, sem que haja uma compreensão correta do tempo e do espaço, nem da Lei Universal. A felicidade e o contentamento são uma meta para nós. No capítulo dois, Krishna diz como isso pode ser alcançado. Quando, por exemplo, as coisas não ocorrem como esperávamos, e quando surge a adversidade, devemos manter nossa mente estável e imperturbada. Só assim podemos encarar os problemas sem que apareçam emoções como ansiedade, medo e raiva. E quando eles não aparecem o resultado é o contentamento, e talvez a felicidade.
Só poderemos encarar a adversidade com este equilíbrio se tivermos compreendido até certo ponto que existe um centro em nós, o eu superior, que está além destes acontecimentos, e que não fica fundamentalmente ansioso porque aconteceu isso ou aquilo, e tampouco tem medo do que possa acontecer, nem raiva diante do que ocorre.
Devemos procurar pela fonte deste tipo de emoção.
A primeira coisa a ser abandonada é o “desejo”. Não se trata de abandonar apenas um desejo, mas todo e qualquer desejo [egoísta] que possa entrar em nosso coração. “Coração” neste contexto significa a sede das emoções, e não deve ser confundido com a mente ou o pensamento.
O fato de que devemos renunciar a qualquer desejo que surja das emoções significa que nossa consciência é algo diferente e independente dos desejos. Compreender este fato é o primeiro passo.
Outro passo, mais adiantado, consiste em ir além do nosso horizonte atual de pensamentos. Para descobrir quem realmente somos, devemos chegar, por esforço próprio, até um nível em nosso interior que não é perturbado pelos nossos pensamentos e sentimentos comuns.
Deve existir um centro assim, porque o que ocorre na vida diária com os desejos e emoções mostra que um aspecto permanente do nosso ser atravessa todos estes acontecimentos diários.
Sabemos que com o tempo tudo passa. A cada dia temos outras situações ao nosso redor. Novos desejos surgem, outras dificuldades aparecem, mas é o mesmo “eu” que passa por tudo isso. Portanto, nós não somos o desejo, nem a raiva, nem a ansiedade, nem o medo que podemos sentir. Permanecemos à parte de todos estes pensamentos e sentimentos, a menos que sejamos absorvidos por eles.
No seu devido tempo, chegamos a compreender que nenhum acontecimento favorável ou desfavorável pode afetar-nos de fato, se não estivermos ansiosos, com medo, ou com raiva em relação ao resultado das ações.
É por isso que se recomenda não classificar os acontecimentos como favoráveis ou desfavoráveis, nem como agradáveis e desagradáveis, ou bons e maus.
No tempo certo, estaremos felizes. Não vamos estar emocionalmente agitados, mas teremos paz sem ansiedade, sem medo ou raiva, aceitando calmamente tudo o que acontece, contentes e imperturbados. A pessoa verdadeiramente feliz não se altera porque as coisas acontecem de um jeito ou de outro. Ela mantém os seus desejos e as suas repulsas de lado e olha todas as coisas com uma mente serena.
As atrações e rejeições surgem dos cinco sentidos e dos órgãos físicos. Chamamos de “prazer” aquilo que sentimos quando os sentidos gostam de algo. Quando eles não gostam, chamamos de “dor”. Os sentidos se transformaram em agentes da atividade mental e do desejo. Assim, somos carregados pelos nossos sentidos, ao invés de controlá-los e de obter deles a ajuda que precisamos para a nossa evolução. Tendo deixado anteriormente que os sentidos fossem arrastados para lá e para cá, devemos agora começar a controlá-los.
Os órgãos e sentidos são os cavalos que puxam a carroça, e que disparam com ela produzindo doença, sofrimento, etc., arrastando consigo o dono da carroça, e colocando-o em todo tipo de situação difícil. Por isso se aconselha afastar os sentidos dos seus objetivos e sensações rotineiros, fazendo com que eles levem a carroça para onde nós desejamos. Mas mesmo este controle não é suficiente. Ele pode levar a pessoa à hatha ioga.[2]
A próxima etapa é compreender o que significa estar feliz e contente “através do eu superior”. Mais além daquilo que chamamos de “eu”, é possível encontrar a energia, a força e a sabedoria do eu superior, de cuja luz o “eu” que está no corpo é um raio. A real sabedoria do nível superior só pode se manifestar quando o eu inferior se volta para o eu superior.
A tranquilidade no nível dos pensamentos surge quando o coração obedece à vontade, quando o “eu” compreende que não possui coisa alguma e age sem cobiça, egoísmo ou orgulho, tendo abandonado todos os desejos. O desejo ainda surge no coração; mas ele já não afeta mais a pessoa, nem a perturba, porque não é promovido nem apoiado pela mente. Se compreendermos que os desejos, cobiças, etc., nunca podem ser satisfeitos completamente, porque continuam sempre aumentando, veremos a falsidade deles e deixaremos que morram à medida que surgem na mente.
O “eu” que deixa de ser carregado por desejos e emoções pode transformar-se em um instrumento do eu superior. Então ele começa a “aceitar a sabedoria vinda de todas as partes”.
Isso é algo difícil de obter. Parece que um esforço nesta direção terá de ocupar o nosso pensamento e a nossa vontade o tempo todo durante o dia, e talvez durante várias vidas. E é verdade. Mas Krishna nos indica a chave da vitória; confiar no Espírito Supremo, que é ainda maior que o eu superior. Podemos dizer que na verdade isso é ter confiança na Lei. Se considerarmos que todas estas afirmações de Krishna são explicações da Lei, a vida se torna um laboratório onde podemos testar e comprovar o fato de que elas são verdadeiras.
Assim nos tornamos senhores da nossa vida, e cada acontecimento passa a ser um desafio. A vontade sempre reage a um desafio; nem sempre a um “teste”. Fazer frente a um desafio requer esforço, e parece nos levar para além do reino do que é agradável ou desagradável, das emoções e dos sentimentos. Deste modo o desafio se transforma numa competição.
Mas devemos ter cuidado em relação ao orgulho e à autoconfiança, porque confiar em nosso próprio eu inferior é uma coisa, e confiar em nosso eu superior é outra coisa, muito diferente.
NOTAS:
[1] “The Bhagavad Gita”, William Q. Judge, Theosophy Company, Los Angeles, 1986. (CCA)
[2] Nem toda autodisciplina é espiritual. A Hatha Ioga leva a um controle do eu inferior por parte do próprio eu inferior. A Raja Ioga e a Teosofia ensinam o controle do eu inferior por parte do eu superior, ou alma espiritual. (CCA)
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O texto acima foi publicado pela primeira vez na edição de março de 2003 da revista indiana “The Theosophical Movement”.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
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