Passando de Profeta a Profeta, a ‘Palavra’ Cintila
Como Relâmpago; Exceto Se Ocorre um Problema
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
Helena Blavatsky em seu escritório
 
 
 
Em vários movimentos religiosos e filosóficos o tema da sucessão espiritual não é simples nem fácil de entender. Podemos constatar este fato estudando filosofia esotérica e observando a história do movimento teosófico.
 
Referindo-se à tradição espiritual do país em que nasceu, Helena P. Blavatsky escreve:
 
“Existe sobretudo entre os eslavos e os russos uma difundida superstição (?), segundo a qual o mágico ou o feiticeiro não pode morrer antes de ter passado a ‘palavra’ a um sucessor. Tão enraizada está ela nas crenças populares que não podemos imaginar uma pessoa na Rússia que não a tenha ouvido. Não é difícil traçar a origem dessa superstição aos antigos mistérios que durante séculos se difundiram por todo o globo.” [1]
 
A fundadora do movimento esotérico moderno acrescenta:
 
“A antiga Variago-Russ tinha seus mistérios tanto no norte como no sul da Rússia; e há muitas relíquias da antiga crença espalhadas nas terras banhadas pelo sagrado Dnieper, o Jordão batismal de toda Rússia. Nenhum Znachar (aquele que sabe) ou koldun (feiticeiro), homem ou mulher, pode morrer de fato sem antes ter passado a misteriosa palavra a alguém. A crença popular afirma que ele, se não o fizer, resistirá à morte com grandes sofrimentos por semanas e meses, e quando por fim se libertar será apenas para perambular erraticamente pela Terra, incapaz de deixar a região inferior, a menos que encontre um sucessor mesmo depois da morte. Em que medida a crença pode ser verificada por outros, não sabemos, mas fomos testemunhas de um caso que, por seu dénouement  [desfecho] trágico e misterioso, merece ser aqui dado como ilustração do assunto em pauta.”
 
E Blavatsky compartilha com seus leitores o seguinte exemplo prático:
 
“Um velho, de mais de cem anos, camponês-servo no governo de S_________  que granjeara uma grande reputação como feiticeiro e curandeiro, estava moribundo há vários dias, mas não conseguia morrer. A notícia se espalhou como um relâmpago, e o pobre homem foi abandonado até mesmo pelos membros de sua própria família, pois esta tinha medo de receber a incômoda herança. Por fim o rumor público na aldeia era tal que ele enviou uma mensagem a um colega menos versado do que ele na arte e que, embora vivesse num distante distrito, atendeu mesmo assim ao chamado, prometendo chegar na manhã seguinte. Nessa ocasião estava em visita ao proprietário da aldeia um jovem médico que, pertencendo à famosa escola do Nihilismo daqueles dias, riu bastante da ideia. O dono da casa, sendo um homem muito pio, mas pouco inclinado a zombar da ‘superstição’, riu – por assim dizer – com o canto da boca. Enquanto isso, o jovem cético, para satisfazer sua curiosidade, fez uma visita ao moribundo. Descobriu que ele não poderia viver por mais de vinte e quatro horas e, decidido a provar o absurdo da ‘superstição’, tomou providências para deter o ‘sucessor’ numa aldeia vizinha.”
 
Indivíduos ignorantes tendem a criar poucos problemas na medida em que sabem da sua ignorância. Eles se tornam especialmente nocivos quando se consideram mais sábios que os outros e começam a agir de modo agressivo.
 
HPB prossegue:
 
“Na manhã seguinte, um grupo de quatro pessoas, o médico, o dono do lugar, sua filha e a autora destas linhas, foi à cabana onde se deveria cumprir o triunfo do ceticismo. O moribundo aguardava seu libertador a todo instante, e sua agonia se tornou extrema com a demora. Tentamos persuadir o médico a fazer a vontade do paciente, por amor à humanidade. Ele riu. Tomando numa das mãos o pulso do feiticeiro, e com a outra o relógio, afirmando em francês que tudo estaria terminado, permanecendo absorto em sua experiência profissional. A cena era solene e aterradora. Subitamente, a porta se abriu, e um jovem entrou com a informação, dirigida ao médico, de que o koum estava caído de bêbado numa aldeia vizinha e que, de acordo com suas ordens, não poderia estar com o ‘avô’ senão no dia seguinte.”
 
Então aconteceu a lição:
 
“O jovem médico ficou confuso, e estava prestes a se dirigir ao velho, quando, rápido como um relâmpago, o Znachar retirou sua mão da dele e se levantou no leito. Seus olhos encovados chisparam; sua barba e o cabelo brancos que enquadravam o rosto lívido deram-lhe um semblante terrífico. Em seguida, seus longos braços descarnados agarraram o pescoço do médico, e com uma força sobrenatural trouxeram a cabeça do jovem para perto da sua face, mantendo-a como que num torno, enquanto murmurava em seu ouvido palavras para nós inaudíveis. O cético lutou para libertar-se, mas antes que tivesse tempo para fazer qualquer movimento efetivo, o trabalho evidentemente já fora feito; as mãos relaxaram a pressão, e o velho feiticeiro caiu de costas – um cadáver!”
 
O Znachar estava agora livre, e o cético não estava.
 
HPB escreve:
 
“Um estranho e fantasmagórico sorriso pousava sobre seus pétreos lábios – um sorriso de diabólico triunfo e de vingança satisfeita; mas o médico parecia mais pálido e mais cadavérico do que o próprio morto. Olhou à volta com uma expressão de terror difícil de descrever, e sem responder às nossas perguntas, correu selvagemente da cabana, em direção à floresta. Mensageiros foram enviados em seu encalço, mas não puderam encontrá-lo em parte alguma. Ao entardecer, ouviu-se um estrondo na floresta. Uma hora depois seu corpo foi trazido à casa, com a cabeça atravessada por uma bala, pois o cético havia estourado os miolos! O que o levou a cometer suicídio? Que encantamento mágico de feitiçaria a ‘palavra’ do moribundo feiticeiro produziu em seu cérebro? Quem poderá dizê-lo?”
 
A Necessidade de Passar a Palavra
 
Em outro trecho de “Ísis Sem Véu”, HPB define este mesmo acontecimento como uma evidência de que “há segredos terríveis na natureza”, porque com frequência um feiticeiro “não pode morrer enquanto não passar a palavra a outro, e os hierofantes da Magia Branca raramente o fazem.”
 
Ela prossegue:
 
“Parece que o poder terrível da ‘Palavra’ só poderia ser confiado a um homem de um certo distrito ou corpo de pessoas de cada vez. Quando o Brahmatma [2] estava prestes a deixar o fardo da existência física, ele comunicava seu segredo ao seu sucessor, seja oralmente, seja por meio de um escrito colocado numa caixa seguramente aferrolhada e ao alcance apenas do legatário.” [3]
 
HPB menciona então outros exemplos de sucessão espiritual e afirma:
 
“Moisés ‘depôs as mãos’ sobre seu neófito, Josué, nas solidões de Nebo, e partiu. Aarão inicia Eleazar no Monte Hor, e morre. Siddharta-Buddha promete a seus discípulos-mendicantes que antes da morte viverá naquele que o merecer, abraça seu discípulo favorito, murmura em seu ouvido, e morre; e assim que a cabeça de João repousa no regaço de Jesus, é informado de que ele deverá ‘esperar’ até a sua volta. Tal como as fogueiras de comunicação dos tempos antigos, que, acesas e extintas alternadamente no topo das montanhas, transmitiam certas informações por um longo trecho do país, vemos assim uma longa linhagem de homens ‘sábios’, desde o início da história até os nossos tempos, comunicando a palavra da sabedoria aos seus sucessores diretos. Passando de profeta a profeta, a ‘Palavra’ cintila como relâmpago, e, retirando embora para sempre o iniciador da visão humana,  apresenta o novo iniciado.”[4]
 
As considerações de HPB reproduzidas acima fornecem uma chave para observar melhor alguns fatos da história do movimento esotérico.
 
Se aplicamos a lei da analogia à história do Znachar russo, o episódio nos ajuda a compreender a súbita perda de bom senso que dominou até mesmo os melhores estudantes de Helena Blavatsky, pouco depois que ela abandonou a vida física em maio de 1891.
 
Parece que não havia ninguém capaz de “escutar corretamente as palavras finais de HPB”. Como resultado disso, o sentido de realidade do movimento teosófico teria necessariamente que ser perdido; e isso foi o que aconteceu.  
 
Algumas décadas foram necessárias para que o movimento começasse lentamente a recuperar o discernimento. Na primeira metade do século 21, ainda falta muito para que a tarefa esteja completa, e alguns erros grosseiros dominam muitas das instituições teosóficas. Por outro lado, grandes nuvens de ilusão e engano já foram dissolvidas, e um progresso significativo pode ser feito na direção de 2075 e além.
 
NOTAS:
 
[1] Reproduzido da longa nota de rodapé das páginas 57-58 do volume III de “Ísis Sem Véu”, de Helena P. Blavatsky, Editora Pensamento, São Paulo. A tradução foi verificada e, quando necessário, corrigida conforme o original, tendo como meta também maior clareza em português. Na edição original em inglês, Theosophy Co., veja o volume II, pp. 42-44.
 
[2] Brahma-atma ou Brahmatma era o principal dos iniciados no templo hinduísta. Veja a p. 36 do volume III, de “Ísis Sem Véu”. Em inglês, “Isis Unveiled”, volume II, p. 31.
 
[3] Este trecho é reproduzido da p. 189 do volume IV de “Ísis”. O uso de caixas fechadas para guardar documentos esotéricos facilita a preservação de certos textos especiais e também do magnetismo que os rodeia. Esta não é a única menção ao fato em “Ísis Sem Véu”: veja o volume III da obra, no alto da p. 37. A referência é importante porque o uso de caixas para guardar documentos especiais foi introduzido por HPB no movimento teosófico pouco mais de uma década depois da publicação de “Ísis”.
 
[4] “Ísis Sem Véu”, HPB, Ed. Pensamento, volume IV, p. 189. Na edição em inglês, veja a p. 571, volume II, “Isis Unveiled”, Theosophy Co. A tradução foi verificada e, quando necessário, corrigida conforme o original, tendo como meta também maior clareza em português.
 
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
 
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