Havia na Floresta um
Roble de Raízes Colossais
 
 
Júlio Dinis
 
 
 
 
 
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Nota Editorial de 2017
 
Símbolo da vida universal, o carvalho ou
roble é sagrado entre os druidas e objeto de
reverência nas diferentes tradições religiosas,
incluindo a antiguidade grega e romana.  
 
O poema a seguir é reproduzido do livro
Poesias”, de Júlio Dinis, Grandes Clássicos
da Poesia, Publicações Europa-América, Mem
Martins, Portugal, 1999, 263 pp., ver pp. 149-153.
 
Com um sabor shakespeariano, “O
Carvalho da Floresta” está entre os
grandes poemas clássicos do idioma português.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
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Havia na floresta um roble cheio de anos,
Vestido de hera anciã, decano entre os decanos
Dos bosques do arredor. Raízes colossais
Prendiam-no à terra; ao ar descomunais
Os braços elevava, e ao vê-lo assim dir-se-ia
Que aos outros vegetais as bênçãos estendia.
 
Velho, e ainda a primavera o vinha requestar;
O outono desfolhava-o em último lugar;
Opunha ao sol do estio a fronde [1] espessa e bela;
Respeitava-o no inverno o raio da procela. [2]
Viu passar gerações após gerações
Em risos e em pranto, em festas e orações;
Viu crianças pedir-lhe a sombra grata e amena
Que, amantes ao depois, naquela mesma cena
Viu a falar de amor, e no seu tronco abrir
Duas iniciais que liam a sorrir;
E mais tarde ainda os vira, velhos, encanecidos,
Pedir-lhe em vão alento aos lânguidos sentidos,
A repousar ali. A coma erguida ao céu
De longe se mostrava envolta inda no véu
De névoas da distância. Ao regressar à aldeia,
Ansiava o lavrador por avistá-lo, e a ideia
De tudo quanto amava o vinha comover:
Do lar, do velho pai, dos filhos, da mulher.
Que olhos de tanto amor, de penas e esperanças
Lhe enviavam também saudosas as crianças
Ao deixarem a casa, a pátria, irmãos e mãe
Indo tentar porvir por esse mundo além!
 
Em que tempo nascera esta árvore gigante?
Que época viu crescer o arbusto vacilante,
Curvando-se por terra a cada viração,
Esse que já nem teme ameaças do vulcão?
Quem o pode dizer? Nas trevas se envolvia
A infância do colosso. E quando acabaria?
Que audaz raio do céu, que convulsão fatal
Por terra lançará o enorme vegetal?
Mas, ai, o que a tormenta e o tempo não consomem,
Muitas vezes destrói a ousada mão do homem;
Em vão a tempestade incólume o deixou:
O golpe de um machado um dia o derrubou,
E ao braço do homem cai, dos homens o amigo.
Ouvi a narração do caso, que eu prossigo.
É pela madrugada! hora que a amar induz;
Todo é verdura o campo, o céu é todo luz.
O roble colossal no tronco encarquilhado
Sente a seiva girar. Das aves o trinado
Se ouve na espessa copa, e ao festival clamor
Respondem num sorriso a borboleta e a flor.
Como um velho entretido a ouvir cantar os netos,
Que lhe passam nas cãs os dedos desinquietos,
Assim ele também, vulto austero e senil,
Se compraz a escutar a música de Abril,
Os trinos e o bater das asas na folhagem,
A turba jovial, da infância alada imagem.
De súbito cessou das aves o cantar;
Param, olham com medo o chão, o bosque e o ar.
No seio da floresta um som vago se escuta,
Como o rugir do mar quando nas praias luta.
O roble estremeceu, ouvindo: “Que será?
Que sinistro rumor é esse?” – Perto já
Se distingue melhor. É um travar de vozes
De alguns homens do campo, alegres e velozes.
 
O roble sossegou, e às aves disse assim:
– “Podeis ficar sem medo aqui ao pé de mim,
São amigos que vêm, pobres trabalhadores,
Sobre quem eu estendo os ramos protetores,
Quando, durante a sesta, o sol ardente cai.
Aves, não receeis. Amigos são, cantai.
Vede, pararam já. Tenta-os a fresca selva,
O machado, o alvião [3] pousaram sobre a relva.
Vão descansar decerto. Ergueram para aqui
O olhar; a gratidão bem claro nele vi.
Cantai, aves, cantai nos ramos da floresta,
Enquanto eu lhes protejo a procurada sesta.”
 
Assim disse o carvalho às aves, mas em vão,
Que nenhuma a cantar inda se atreve então,
Ou, se alguma o tentou, emudeceu no meio,
Que só para gemer lhe deu vigor o seio;
Parecem pressagiar um vago e oculto mal,
Como quando no céu preveem temporal.
Mas já ordens se dão; preparam-se os obreiros;
Reparte-se a tarefa; exercem-se ligeiros;
Já tudo está disposto, e pronto a uma voz.
Eis se dá um sinal… rapidamente após,
De um dos homens do bando o industriado braço
Lança em volta do tronco traiçoeiro laço.
E as aves a tremer!… “Doidas!” Assim lhes diz
O velho, sacudindo a secular cerviz:
“Das crianças é este um usual brinquedo:
Embaladas assim nos braços meus, sem medo,
Em jogos infantis se aprazem. Não fujais.
Doidas que sois! Dizei, do que vos receais?
Vê-las-eis cedo vir, e o peso é tão suave,
Que me alegra! A criança é pouco mais que a ave.
Não aves, não fujais, que são vossas irmãs,
Ligeiras como vós, e como vós louçãs!”
 
Fez-se ouvir de repente um som rápido e seco,
Que teve na floresta um temeroso eco.
O tronco estremeceu. As folhas sem vigor
Caíram pelo chão, quais lágrimas de dor.
As aves a gemer, das frondes sacudidas
Fugiam em tropel como ilusões perdidas!
No tronco, em fundo golpe, o ferro penetrou;
A árvore, ao senti-lo, um pouco vacilou,
Mas depois disse ainda às pobres andorinhas
Ocultas, a tremer, nas árvores vizinhas:
 
– “Foi doloroso o golpe! útil porém talvez.
O destro rachador derruba muita vez
Algum ramo já velho, inútil parasita,
E à fecundante seiva o curso facilita.
Agora foi mais fundo, e rijo o golpe foi,
E perto da raiz. Por isso mais me dói!
Errou talvez ao dá-lo a mão inexperiente.
O golpe foi cruel. Se foi! mas inocente.”
 
Eis que, ao primeiro golpe, um outro se seguiu,
E outro, mais outro e outro; e o eco os repetiu,
E as aves a carpir [4] do velho amigo a sorte.
Não se ilude ele já; ferido pela morte,
Falece-lhe o vigor; das achas ao brandir
Vacila, geme e ondeia! E próximo a cair.
Prossegue no entretanto a abominável obra,
Da turba afadigada o vozear redobra,
No íntimo do lenho, o ferro ímpio, cruel,
As fibras despedaça. Os homens em tropel
Arredam-se a distância, a fim que os não esmague
O gigante ao cair, e moribundo pague
A morte que lhe dão sacrílega e atroz.
“À obra, à obra”, então alto soa uma voz,
E todos lançam mão da preparada corda.
A triste ave da noite à vozearia acorda,
Solta um lúgubre pio. Um frêmito sutil
Nas folhas passa ao roble. A brisa foi de abril
Que veio ali dizer-lhe a extrema despedida?
Beijá-lo a última vez, saudosa e comovida?
Oscila, geme ainda, estala-lhe a raiz,
Solta como estertor de morto. Ouvis?… Ouvis?
 
Inclina-se para a terra, em queda suave, lenta,
Desce… desce e, descendo, a rapidez aumenta.
Até que com fragor na relva ao longe cai
O roble secular! Homens, folgai! Folgai!
Retumba na floresta o som que fez na queda,
O fragor do trovão nos ares arremeda,
E as aves, levantando o voo alto e veloz,
Às nuvens vão contar o caso iníquo e atroz;
E com sentido pranto, e em queixas magoadas,
Choram-no pelo bosque as comovidas fadas.
E a obra do senhor às mãos do homem caiu!
E a vida secular numa hora se extinguiu.
E os obreiros do mal saem dali cantando.
Chega logo depois um turbulento bando
De crianças, que a rir, o tronco sem vigor
Calcam, brincando. E após em práticas de amor,
Voa rápido o tempo a amantes e a esposos
Que ali falando vêm. Depois, velhos, saudosos
Do tempo que passou por eles em comum,
Sentam-se a conversar. Mas deles, ai, nenhum
Uma lágrima tem para desgraças destas.
Homens, que mal vos fez o velho das florestas?
 
1867
 
NOTAS:
 
[1] Fronde: folhagem, ramagem. (CCA)
 
[2] Procela: tempestade. (CCA)
 
[3] Alvião: picareta. (CCA)
 
[4] Carpir: chorar, lamentar. (CCA)
 
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Júlio Dinis, autor do romance “As Pupilas do Senhor Reitor”,  é o nome literário do escritor português Joaquim Guilherme Gomes Coelho. Viveu 32 anos incompletos: tendo nascido em 14 de novembro de 1839, morreu em 12 de setembro de 1871.
 
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Veja em nossos websites os artigos “A Magia das Árvores”, “O Decálogo das Florestas” e “O Poder de Cura do Eucalipto”. Leia os poemas “A Primeira Árvore”, de Hermes Fontes, “Velhas Árvores”,  de Olavo Bilac, “O Hino das Árvores”, de Olavo Bilac, “Uma Semente”, de Afonso Lopes Vieira, e “A Oração das Árvores”. Este último pertence à tradição popular e não tem autor determinado. Sobre a teosofia dos bosques, há também o capítulo dois da obra “A Vida Secreta da Natureza”, de Carlos Cardoso Aveline (Ed. Bodigaya, terceira edição, 2007), que é intitulado “Conversando com a Floresta”.
 
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