Um Conto Russo Clássico Examina
a Relação Entre Dor e Transcendência
Fiódor Dostoievsky
Nota Editorial de 2017
Fiódor Dostoievsky (1821- 1881) é um dos maiores escritores de todos os tempos.
Em 1889, Helena Blavatsky, a fundadora do movimento teosófico, escreveu o seguinte sobre este pensador do sofrimento humano:
“O que o mundo europeu necessita agora é uma dúzia de escritores como Dostoievsky, o autor russo, cujas obras, embora desconhecidas pela maior parte das pessoas, ainda assim são muito lidas entre as classes cultas no continente, assim como na Inglaterra e na América do Norte. E o que o romancista russo fez foi o seguinte: ele falou com audácia e sem medo sobre as verdades mais inconvenientes para as classes altas e mesmo para os setores oficiais, sendo que o segundo procedimento é muito mais perigoso que o primeiro. E no entanto, vejam bem, a maior parte das reformas administrativas dos últimos vinte anos [1] é resultado da influência silenciosa e incômoda dos seus escritos. Segundo afirma um dos seus críticos, as grandes verdades abordadas por ele foram sentidas por todas as classes sociais de maneira tão forte e vivencial que pessoas cujas visões eram diametralmente opostas ao ponto de vista dele foram forçadas a sentir uma intensa simpatia por este escritor destemido, e expressaram isso a ele.” [2]
A respeito da dimensão teosófica da obra de Dostoievsky, veja também o artigo “Se Cristo Voltar Neste Natal”, que está disponível em nossos websites associados.
A história a seguir é reproduzida do volume “Maravilhas do Conto Russo”, introdução e notas de Edgard Cavalheiro, Seleção de Serge Ivanovitch, Editora Cultrix, São Paulo, 1957, 307 pp., ver pp. 89-92.
(Carlos Cardoso Aveline)
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A Árvore de Natal de Cristo
Fiódor Dostoievsky
Como sou romancista, parece que estou imaginando uma história. Digo parece – e sei perfeitamente que imaginei mesmo; mas tenho a certeza de que isso aconteceu, não sei onde nem há quanto tempo; e aconteceu justamente na véspera de Natal, nalguma cidade imensa, num dia de frio assassino.
Era uma vez uma criança num porão, um menino de seis anos, ou menos ainda. O pobrezinho acabava de acordar, tremendo de frio sob os farrapos que o cobriam. Quando respirava, uma baforada branca lhe saía da boca, e ele, sentado no canto de uma sala, começou a soprar de propósito, para ver a nuvem mexer-se. Isso o distraía, mas preferia mais comer. Aproximou-se várias vezes do velho colchão de capim, duro e seco como um pão de pobre, onde, com um saco por travesseiro, repousava sua mãe doente. Como viera ela parar ali? Provavelmente, chegando de outra cidade, adoecera de súbito. A mulher que alugava esse porão fora presa na antevéspera; os outros inquilinos se tinham dispersado, para festejar o Natal; o único que ficara, um trapeiro, cozinhava, havia dois dias, a bebedeira com que celebrara de antemão o nascimento de Cristo. No outro canto da sala gemia uma octogenária reumática, antiga empregada de crianças, que morria abandonada; não parava de suspirar, de se lamentar e de praguejar contra o garoto que, entretanto, nem ousava aproximar-se. No corredor ele achara bebida, mas nada para comer, e já chegara mais de dez vezes perto da mãe para acordá-la. A obscuridade causava-lhe uma opressão angustiosa; já estava escuro e ninguém aparecera para acender o fogo. Apalpou o rosto da mãe e ficou surpreso: estava gelada e rígida como um muro. “Está fazendo frio”, pensou, com a mão inconscientemente pousada no ombro da morta; depois soprou sobre os dedos para aquecê-los, pegou o boné que ficara em cima da cama e, procurando não fazer barulho, saiu tateando na escuridão. Já teria saído antes se não fosse o medo de encontrar na escada um enorme cachorro que ouvira latir o dia todo. Mas nem o viu até chegar à rua.
Senhor, que grande cidade! Nunca vira nada assim. Onde ele morava as ruas eram escuras, iluminadas por uma única lanterna. As casas de madeira, baixinhas, viviam fechadas; apenas a noite caía, não se encontrava mais viva alma; todos ficavam calados dentro das casas e só os cachorros, centenas, milhares de cachorros, ganiam ao relento. Mas, em compensação, podia aquecer-se, davam-lhe de comer… enquanto aqui… Meu Deus! não achará nada para comer? E que algazarra, que azáfama, que claridade, quanta gente, quantos cavalos e carros… e o frio, que frio! A neblina gela em filetes nos focinhos dos cavalos que galopam, as ferraduras batendo forte nas pedras das ruas, por sobre a neve mole; os passantes esbarram uns nos outros, empurrando-se e, Deus do céu, como lhe doem o estômago vazio e os dedinhos duros de frio! Um guarda passa junto dele, vira-se para fingir que não o vê.
Ainda uma rua: como é larga! Não há dúvida que vai ser esmagado; toda a gente grita, vai, vem, corre; e que claridade, que claridade extraordinária! Que é isso? Ah! uma grande vidraça, e por detrás da vidraça um quarto com uma árvore que vai até o teto: é um pinheiro, uma árvore de Natal cheia de luzes, de pequenos objetos, de frutas doiradas, rodeada de bonecas e cavalinhos. No quarto, correm crianças limpas e bem vestidas; riem, brincam, comem e bebem. Uma menina está dançando com um menino. Como é bonita! Ouve-se a música através da vidraça. O pequeno olha tudo com espanto; sorri, enquanto lhe doem os dedos dos seus pobres pés, e os das mãos, de tão vermelhos e duros, já não podem dobrar. Mas, de repente, o menino lembra-se da dor dos dedos; começa a chorar, corre, e encontra outra vidraça, através da qual vê outra sala, com outra árvore; mas agora há mesas cobertas de bolos de todas as qualidades, bolos de amêndoas, vermelhos, amarelos, que quatro ricas senhoras distribuem a todos os que entram. A todo momento a porta abre-se para deixar entrar homens bem vestidos. Lentamente, o menino se aproxima, abre a porta, entra de chofre. Ai! expulsam-no com gritos e gestos indignados. Uma senhora meteu-lhe uma moeda na mão, enquanto o empurrava para a rua. Que medo! A moeda rolou na escada com um som claro: não pudera fechar os dedos para segurá-la. Então o garoto pôs-se a caminhar apressadamente para longe – sem saber para onde. Com vontade de chorar, com medo, desata a correr. Corre soprando nos dedos. Uma sensação de angústia o oprime, de sentir-se tão só e abandonado; mas logo se distrai. Senhor, que será? Quanta gente parada, olhando curiosamente! Numa janela, através da vidraça, três enormes bonecos vestidos de vermelho e verde parecem vivos: um velho, sentado, toca violino, e os outros dois, de pé, têm nos braços violinos menores; todos meneiam em cadência as cabeças finas, olham-se uns aos outros, mexem os lábios; falam, devem falar – de verdade – e só não se ouve nada por causa do vidro. O menino pensou primeiro que eram pessoas vivas e, quando compreendeu que eram bonecos, pôs-se a rir. Nunca vira bonecos assim, nem imaginava que pudessem existir! Eram tão engraçados, tão engraçados que transformaram em riso o seu pranto. De repente, alguém o puxou, por detrás. Um menino grande, ruim, deu-lhe um soco na cabeça, deitando-lhe o boné abaixo, e depois um pontapé. Rolou no chão, algumas pessoas começaram a gritar; apavorado, levantou-se e disparou a correr, sem saber para onde. Entrou num porão, deu num pátio, sentou-se atrás de um monte de lenha. “Ao menos aqui ele não me encontrará, pensou; está escuro demais.”
Encolheu-se todo, sem poder recobrar o fôlego, tanto medo tinha, e repentinamente – porque tudo se passou num segundo – invadiu-o um grande bem-estar, as mãos e os pés cessaram-lhe de doer, e sentiu calor, muito calor, como se estivesse perto de um fogão. Sacudiu-se todo; mais um pouco, e dormia. Como seria bom dormir ali! “Daqui a pouco, vou de novo ver os bonecos”, pensou, sorrindo só de lembrar; “poderia jurar que estavam vivos!” E subitamente pareceu-lhe ouvir sua mãe a cantar-lhe uma cantiga. “Mamãe, vou dormir; ah! como é bom dormir aqui!”
– Vem comigo, vamos ver a Árvore de Natal, meu filho – murmurou inesperadamente uma voz de rara doçura.
Julgou que fosse sua mãe; mas não, não era ela. Quem então o chamara? Não vê ninguém, mas alguém se abaixou sobre ele, abraçou-o no escuro; estendeu os braços e… de repente – ah! como tudo ficou resplandecente! Que maravilhosas árvores de Natal! Mas não é um pinheiro, nunca viu árvore assim. Onde estava? Tudo brilha, tudo reluz, e em toda parte vê bonecas – não, não são bonecas, são meninos e meninas; apenas são crianças luminosas. Envolvem-no, fazem roda em torno dele; beijam-no de passagem, seguram-no, levam-no voando; também ele voa, e vê: vê sua mãe, e lhe sorri.
– Mamãe! Mamãe! Ah! como está bom aqui!
Abraça os novos companheiros; queria tanto contar-lhes a história dos bonecos detrás da vidraça… Pergunta-lhes quem são, onde estão, rindo e atirando beijos.
– Não sabes… esta é a Árvore de Natal do Cristo – responderam-lhe. – Todos os anos, neste dia, há uma árvore assim, que Jesus dá às crianças que não tiveram árvores de Natal na terra…
E soube que todas essas crianças haviam sido iguais a ele; mas uns morreram gelados nos cestos em que os abandonaram nas portas dos palácios de Petersburgo; outros morreram nos asilos das províncias, ou no próprio seio das mães, durante a fome de Samara, ou asfixiados pelo ar contaminado dos cortiços. Mas agora vivem todos como anjos, com o Cristo; e Ele os abençoa, num gesto de ternura que se estende às suas pobres mães… Ei-las todas, ao longe, chorando, olhando para os filhos que passam esvoaçando por junto delas, beijam-nas de leve, enxugam-lhes as lágrimas pedindo-lhes que não chorem, pois se acham tão bem…
E lá embaixo, na manhã seguinte, os porteiros descobriram o cadáver de um menino gelado perto de um monte de lenha. Procuraram sua mãe… ela morrera um pouco antes dele; talvez os dois se tenham encontrado no céu…
Por que terei eu imaginado uma história tão pouco razoável, tão pouco nos moldes de um escritor sério! E dizer-se que eu me propunha a só contar fatos reais! Mas a questão é justamente essa: sempre me pareceu, como parece, que tudo isso poderia acontecer, isto é, a parte do porão e do monte de lenha. Quanto à árvore de Natal de Cristo, não poderei afirmar que exista.
Mas, já que sou romancista, posso bem imaginar que sim.
NOTAS:
[1] Depois de alguns progressos parciais, a servidão dos camponeses russos foi abolida em 1861 pelo czar Alexandre II. Foi a mais importante das reformas liberais da época. Houve também a partir de então uma reforma educacional, com construção de numerosas escolas, uma reforma judicial, estabelecendo a independência dos juízes, e a liberdade de pensamento passou a ser promovida oficialmente. (CCA)
[2] Trecho traduzido do artigo “The Tidal Wave”, publicado em “Collected Writings”, H.P. Blavatsky, TPH, EUA, volume XII, ver pp. 6-7. (CCA)
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