Um Conto Clássico Sobre a
Importância de Respeitar a Verdade
Malba Tahan
“Nunca se vira tanta luz azul!”
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Nota Editorial de 2018:
O conto “A Pequena Luz Azul” deixa clara
a necessidade de cidadãos éticos, para que haja
honestidade entre os que governam um país.
Ambientada no Hedjaz, região da atual
Arábia Saudita, a história traz um alerta válido
para todos os povos. Ela mostra que o futuro
de uma nação é determinado pela força moral
dos seus integrantes. O mesmo ocorre em relação
ao futuro de qualquer agrupamento humano,
de cada núcleo familiar e associação teosófica.
“Malba Tahan” é o nome literário do professor
Júlio César de Mello e Souza (1895-1974).
Suas obras abrem caminho para a ética universal
e a sabedoria inter-religiosa no mundo lusófono.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Certa manhã, depois da prece matinal, o poderoso sultão El-Khamir, rei do Hedjaz, mandou vir à sua presença o prefeito da cidade.
– Prefeito – disse o rei – esta noite, levantando-me casualmente às dez horas, cheguei à janela e avistei ao longe, no meio da escuridão da cidade, uma pequena luz azul, muito viva e brilhante. Estou intrigado com esse caso e desejo vivamente saber quem passou a noite a velar. Ordeno-lhe que abra rigoroso inquérito a fim de apurar a razão dessa vigília.
– Obedeço a Vossa Majestade! – respondeu o prefeito de Jidda, inclinando-se respeitosamente. – Parece-me, porém, inútil esse inquérito! Cumpre-me dizer que aquela luz provinha do oratório da minha casa!
E, diante do espanto indisfarçável do rei, ele ajuntou, modesto, infletindo a cabeça para o peito:
– Eu e minha família passamos a noite em orações, pedindo a Deus Onipotente pela preciosa saúde de Vossa Majestade!
– Obrigado, meu bom amigo – tornou o monarca sinceramente comovido – em muito tenho sua amizade e dedicação!
E acrescentou, solene, com voz sonora e cheia:
– Saberei corresponder aos cuidados que lhe mereço.
Retirando-se o prefeito, mandou o rei chamar o seu grão-vizir Moallin, que acumulava na corte do sultão as elevadas funções de ministro e secretário.
– Meu caro ministro – declarou o rei – resolvi recompensar com mil dinares de ouro o prefeito desta formosa cidade de Jidda!
– Mil dinares de ouro! Por Allah! É muito dinheiro! – atalhou logo o grão-vizir, esgazeando os olhos, tomado de vivo espanto. – Que teria feito o governador da cidade para merecer tão grande mercê?
– Praticou uma ação nobre e sublime – justificou o soberano.
E narrou com a maior simplicidade o caso da luz, rematando-o com a extraordinária confissão que lhe fizera pouco antes o prefeito.
– Permita-me ponderar – proferiu o ministro – que Vossa Majestade está sendo iludido por esse homem indigno. O prefeito, segundo posso provar, não tem família e só sabe orar nas mesquitas quando a isso é obrigado. Vive miseravelmente, como um avarento, em um sórdido casebre para além do bairro judeu!
– Mas… e a pequena luz azul – insistiu o rei – de onde então, provinha ela?
– Vejo-me obrigado, ó Rei generoso! a confessar a verdade – contraveio o ministro com humildade. – Essa pequena luz azul que feriu os augustos olhos de Vossa Majestade era a lâmpada de azeite que ilumina a minha sala de estudos. Passei a noite acordado cogitando acerca dos graves problemas e das múltiplas questões que Vossa Majestade deve resolver na audiência de hoje! Juro pelo Alcorão que é essa a verdade!
– Grande e esforçado amigo! – tornou, radioso, o ingênuo monarca, abraçando o ministro. – Como admiro esse seu amor ao cumprimento do dever!
E, jubiloso, disse-lhe:
– Palavra de Rei, ó Moallin! Tereis brevemente uma recompensa digna da vossa dedicação!
Mal se retirara o ministro, mandou o rei chamar o general Muhiddin, chefe das tropas muçulmanas do Hedjaz, e contou-lhe que estava resolvido a conceder o título de xeique de Lohéia [1] ao seu digno ministro Moallin; o general deveria destacar, portanto, um corpo de quinhentos soldados que ficariam permanentemente à disposição do novo dignitário do Hedjaz.
E o bom monarca, sem nada ocultar, contou ao general a história da luz azul e a dedicação do bom ministro.
– E Vossa Majestade acreditou nas falsas palavras de Moallin? – estranhou o general, tomado de indizível admiração. – Peço especial permissão para provar que esse audacioso vizir, esquecendo o respeito que deve a nosso glorioso sultão, mentiu como um infiel!
Mentira o prefeito! Mentira também o ministro! Como poderia ele, o rei, apurar a verdade sobre o caso? Como descobrir o mistério da luzinha azul?
– Era minha intenção, ó Rei Afortunado! – confessou, modesto, o general, ocultar a verdade. – Vejo-me agora, porém, obrigado a revelá-la. A pequenina luz que durante a noite passada atraiu a atenção de Vossa Majestade provinha apenas da minha tenda de campanha!
– Da sua tenda, general! – clamou, admirativamente, o soberano árabe, mais uma vez surpreendido.
E o general não hesitou em dar terceira versão ao caso. Os boatos de um provável levante revolucionário, de algumas tribos do interior, haviam-no alarmado. Com receio de que os beduínos e seus aliados revoltosos, durante a noite, viessem atacar o palácio real, ficara ele, para maior garantia da vida do rei, acampado nas cercanias da cidade, com algumas forças de sua absoluta confiança.
Por Deus! Que valentia! Que heroísmo! O poderoso sultão não sabia como agradecer ao chefe de suas tropas aquele serviço extraordinário, aquele zelo tão grande pela Ordem e pelo Trono!
– Que farei? – cogitava ele depois que o general se despedira. – Vou conceder-lhe o título excepcional de príncipe de Hedjaz e uma pensão anual de vinte mil dinares! Não… Ele merece muito mais ainda – salvou-me a vida… a coroa…
Depois de muito refletir, e como não chegasse a uma conclusão satisfatória, o pávido monarca resolveu consultar o judicioso ulemá Ali-Effendi, seu velho mestre e conselheiro.
– Na minha fraca opinião – ponderou o sábio muçulmano – Vossa Majestade não deve acreditar nem no prefeito, nem no ministro, nem no general. Quero crer que a tal luz provinha do novo farol de El-Basin, que indica aos navegantes a entrada do porto, assegurando-lhes o bom caminho em noites de tormenta.
O rei alçou para o sábio os olhos surpresos.
– Era, então, a luz do farol! – exclamou.
O prudente ulemá aconselhou-o a que verificasse, naquela mesma noite, quem falava a verdade.
E assim, três horas depois da última prece, quando já bem adiantada ia a noite, ergueu-se o sultão El-Khamir do régio leito, chegou à varanda e estendeu o olhar sobre o panorama da cidade, que lhe dormia aos pés. Surpresa estranha o aguardava: como já era conhecida de todos a notícia das prometidas recompensas, a cidade surgia, naquela noite, extraordinariamente iluminada. Nunca se vira tanta luz azul! Eram milhares de lâmpadas, lanternas e lampiões! Queriam todos agradar ao poderoso soberano; a casa do ministro parecia até o serralho de um califa [2] em noite de festa do Ramadã!
E o crédulo rei do Hedjaz compreendeu, então, que, em seu rico e glorioso país, para cada súdito honesto e dedicado havia um milhão de mentirosos e bajuladores.
NOTAS:
[1] Xeique: palavra árabe que significa chefe, líder – entre outras acepções, entre as quais está “ancião”. É também um título honroso. (CCA)
[2] Serralho: o palácio de um sultão. (CCA)
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O conto acima é reproduzido do livro “Maktub!”, de Malba Tahan, 11ª Edição, 1964, Ed. Conquista, Rio de Janeiro, 220 pp., ver pp. 5 a 10. Título original: “A Pequenina Luz Azul”. A ortografia foi atualizada. A imagem que ilustra o conto em nossos websites associados é a mesma do livro. A publicação online ocorreu dia 26 de setembro de 2018.
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