Quando a Ética Vence a Hipocrisia
Carlos Cardoso Aveline
Duas edições de obras de Malba Tahan publicadas na década de 1990
Um dos maiores best-sellers brasileiros de todos os tempos, o escritor Júlio César de Mello e Souza – mais conhecido como Malba Tahan – é um exemplo de pensador ético e sua obra ensina uma visão humanitária da vida.
No plano externo, as histórias de Tahan não parecem espirituais. Porém, todos os seus personagens importantes são sinceros. Nenhum vilão ocupa a atenção do leitor além do necessário para ser desprezado (de modo não-violento). Pessoas maldosas são raras no reino de aventuras extraordinárias criado por ele.
As histórias se entrecruzam. Uma narrativa leva à outra e a conclusão de muitas delas fica em suspenso. Girando em torno de temas que envolvem o eu inferior – dinheiro, amor, casamento, raiva, ambição, fama, poder – as obras de Malba Tahan são costuradas com o fio da grandeza moral.
Amigo de árabes e judeus, irmão de muitos povos diferentes, defensor dos que sofrem, Tahan ou Mello e Souza (1895-1974) é um exemplo de brasileiro digno. Sua obra completa constitui um guia prático na direção do altruísmo. O caráter frágil e precioso da vida fica evidente: a existência humana é uma aventura e um mistério que se renovam a cada página.
O Velho e a Criança
Educador, Tahan escreveu sobre os primeiros anos da vida humana:
“Grande é o respeito que devemos às crianças. Cumpre-nos educá-las para o bem, tratando-as com alegria e bondade. E como educar uma criança? Há mil maneiras de se educar uma criança; um caminho só, porém, devemos seguir: – É preciso torná-la feliz! Nascem, às vezes, na imaginação infantil ideias tão singulares que surpreendem os homens mais avisados. Há na criança um pouco de [adulto] desde o berço, como há no [adulto] um pouco de criança até a morte!” [1]
Todo final prepara um novo começo, assim como os primeiros passos contêm algo da caminhada inteira.
Malba Tahan usa uma linguagem simples e irretorquível para demonstrar a eterna precariedade dos sonhos de poder pessoal e felicidade cômoda.
Os processos interculturais são constantes em sua obra. Reis, mendigos e princesas aprendem uns com os outros o tempo todo, enquanto sobem e descem dramaticamente no carrossel desafiador e fascinante da vida. O ódio é uma doença passageira: a ajuda mútua conduz a vida nos mais diferentes cenários.
O Governo do Mago
Em um dos seus romances dedicados a jovens e crianças, Tahan descreve uma cidade chamada “Brenan”. Naquele reino distante, quem pretende chegar ao cargo de futuro monarca e herdeiro do trono deve disputar e vencer um concurso de magia.
O escritor explica:
“Em Brenan estava o povo convencido de que a tarefa de governar é tão difícil que só os mágicos são capazes de levá-la a bom termo, isto é, governar sem a oposição dos invejosos, com segurança e acerto.” [2]
Com efeito, o poder do pensamento é decisivo na vida dos povos.
A má vontade, a inveja e o culto ao prazer dificultam a cooperação produzindo violência, corrupção e miséria. Por outro lado, o sentimento de dever para com a pátria, o firme combate à delinquência e o respeito pelos cidadãos honestos são as marcas de um país civilizado.
Cada Mulher é um Livro?
Citando Fénelon, Malba Tahan convida o leitor a examinar como se vê a mulher nos tempos atuais:
“Apreciar a mulher somente pela sua beleza é desprezar as páginas muitas vezes admiráveis de um livro para extasiar-se somente sobre sua encadernação.”
Em seguida, reproduz palavras de A. Dechêne:
“É a mulher que dá valor a todo ser que a rodeia. É ela que suscita empreendimentos valiosos, ela que nos favorece, que sustenta os que vacilam, que cria a felicidade, evita as lágrimas ou as enxuga; é ela que conserva as tradições morais e civiliza a sociedade. Seu gênio é luz.” [3]
A Força da Bondade
Pioneiro da visão inter-religiosa, Malba Tahan promoveu a harmonia entre cristianismo, islamismo, hinduísmo e judaísmo. Uma das suas melhores obras, “Lendas do Céu e da Terra”, é uma compilação.
Lá encontramos os seguintes pensamentos sobre o poder transformador da bondade:
* “Quem, na verdade, resistirá à força imensa da brandura e da bondade? A força, o saber, a beleza não fazem, sem a bondade, conquistas duráveis no domínio das almas. O homem inclina-se perante o talento, mas só se ajoelha diante da bondade. A bondade proporciona a alegria mais fecunda da vida.”
* “Sofreis a injustiça de um mau? Perdoai-lhe, a fim de que não haja dois maus. Não serás julgado pelo muito que souberes, mas pelo bem que fizeres.”
* “Se amares, serás amado. Se servires, serás servido. Se temeres, serás temido. Se te portares bem para com os outros, convém que os outros se comportem bem para contigo. Mas, bem-aventurado é aquele que verdadeiramente ama e não deseja ser amado. Bem-aventurado é o que serve e não pretende ser servido.” [4]
Este último trecho tem um conteúdo claramente franciscano. Nele Malba Tahan indica um caminho para a felicidade interior. O convite vale para cada habitante do século 21.
É correto defender princípios éticos, e é correto contrariar os poderosos sempre, que necessário. Grandes sábios de todos os tempos fizeram isso, inclusive Jesus, Buda [5], Pitágoras, Sócrates, Sêneca, São João da Cruz, Alessandro Cagliostro, Helena P. Blavatsky e outros.
A bondade questiona o erro, rompe a rotina e subverte a ignorância organizada. Ainda assim, a boa vontade é sempre boa vontade; ela se expressa através da não-violência (ahimsa) e não se transforma em desejo de destruir, mas constrói o melhor.
NOTAS:
[1] Reproduzido de “A Caixa do Futuro”, de Malba Tahan (1895-1974), novela juvenil, Ed. Conquista, Rio de Janeiro, 1964, terceira edição, 205 pp., ver p. 17.
[2] “A Caixa do Futuro”, Malba Tahan, novela juvenil, Ed. Conquista, 1964, terceira edição, 205 pp., ver p. 108.
[3] “Lendas do Céu e da Terra”, Malba Tahan, Ed. Conquista, RJ, 1956, 222 pp., ver p. 186. Sobre a visão teosófica da mulher, clique para ver a Carta de um Mestre publicada nos websites associados sob o título de “Como a Mulher Ilumina o Futuro”.
[4] “Lendas do Céu e da Terra”, Malba Tahan, Ed. Conquista, RJ, 1956, 222 pp., ver p. 80, conto “A Força da Brandura”.
[5] Buda questionou o sistema de castas hindu e não acreditava em sistemas autoritários de poder. Os budistas foram massacrados pelos brâmanes na Índia. O budismo teve que ressurgir a partir de outros países.
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Uma versão inicial do artigo “O Mundo de Malba Tahan” faz parte da edição de setembro de 2018 de “O Teosofista”, pp. 7 a 9. Nela não há indicação de nome do autor. O artigo foi publicado como item independente nos websites associados dia 20 de agosto de 2019.
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Clique e veja alguns dos contos filosóficos de Malba Tahan.
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