A Solidariedade e a Busca da Verdade
Como Bases do Renascimento Cultural
Carlos Cardoso Aveline
O educador Paulo Freire nasceu em 1921 e viveu até 1997
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O texto a seguir reproduz o capítulo 27 da obra
“Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline,
Edifurb, Blumenau, SC, Brasil, 2007, 170 páginas.
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Situada em uma área de proteção ambiental, a biblioteca em que trabalho é rodeada de árvores e envolta pelo canto dos pássaros. Neste ambiente aprazível, propício ao estudo, suas estantes abarrotadas guardam registros da sabedoria de grandes almas de épocas próximas e distantes. Nelas está, também, a obra do pernambucano Paulo Freire, que com justiça pode ser considerado um dos maiores pensadores brasileiros de todos os tempos.
Cético em relação a estruturas dogmáticas, sua vida teve uma forte dimensão ética e religiosa. Engajado nas lutas populares, ele também foi um dos grandes ativistas sociais do século 20, exatamente pelo seu papel na construção de modelos de democracia que levem em conta a criatividade popular. Mundialmente famoso no terreno da educação, Paulo Freire foi um filósofo notável, na tradição socrática.
Freire foi para o exílio devido à ditadura militar inaugurada em 1964 e trabalhou algum tempo no Chile. Mais tarde, já em outros países, teve a oportunidade de aplicar a sua pedagogia da libertação trabalhando para o Conselho Mundial das Igrejas (que reúne o cristianismo protestante). Viveu na África e na Europa. De volta ao Brasil durante o processo de redemocratização, foi Secretário Municipal da Educação em São Paulo. Teve tempo de ver seu trabalho amplamente reconhecido. Leonardo Boff, um dos principais criadores da Teologia da Libertação, escreveu:
“A importância de Paulo Freire foi de ter mostrado que o oprimido jamais é somente um oprimido. É também um criador de cultura e um sujeito histórico, que, quando conscientizado e organizado, pode transformar a sociedade. A teologia da libertação, ao fazer a opção pelos pobres contra a sua pobreza, assume a visão de Paulo Freire. O processo de libertação implica fundamentalmente uma pedagogia. A libertação se dá no processo de afastamento do opressor que carregamos dentro e na constituição da pessoa livre e libertada, capaz de relações geradoras de participação e de solidariedade. (…) Por isso Paulo Freire foi e é considerado, desde o início, um dos fundadores da teologia da libertação”.
Nascido no Recife em setembro de 1921, Paulo Freire morreu em maio de 1997, deixando plantadas as bases metodológicas do que pode vir a ser um renascimento cultural, político e econômico do povo brasileiro.
Pensador socrático, ele apoiou sua pedagogia sobre o diálogo. As bases do seu pensamento estão na Grécia antiga. Grande erudito, ele vai além dos livros. Ele ensina que devemos recriar a cada momento o nosso conhecimento da realidade, em um processo aberto de diálogo e investigação, em que não devem faltar nem a coragem nem a humildade.
1) Desde o século 18, grande parte dos ativistas sociais parece considerar, ingenuamente, que o ser humano já está pronto e não precisa ser melhorado. Segundo eles, basta reformar a sociedade externamente, para que o sofrimento seja eliminado. Jean-Jacques Rousseau, Leon Tolstoi e Mahatma Gandhi, por exemplo, parecem haver partido, pelo menos em grande parte, da premissa excessivamente simples de que “o ser humano é bom”, e portanto basta eliminar os mecanismos de opressão social. Você, por sua vez, reconhece que “o ser humano é bom”, mas afirma que ele está incompleto, e ensina que ele deve construir a si mesmo enquanto constrói a sociedade. Essa “pedagogia permanente” é tanto macrocósmica como microcósmica, e parece enriquecer e aprofundar a velha proposta de Rousseau, Tolstoi e Gandhi, para não falar dos movimentos sociais em seu conjunto. Sua proposta leva inevitavelmente à democracia participativa…
R: A educação tem um caráter permanente. Não há seres educados e não-educados. Estamos todos nos educando. Existem graus de educação, mas esses não são absolutos. O homem, por ser inacabado, incompleto, não sabe de maneira absoluta. Só Deus sabe de maneira absoluta. A sabedoria parte da ignorância. Não há ignorantes absolutos. Se num grupo de camponeses conversarmos sobre colheitas, devemos ficar atentos para a possibilidade de eles saberem muito mais do que nós. (…) Por isso não podemos nos colocar na posição do ser superior que ensina um grupo de ignorantes, mas sim na posição humilde daquele que comunica um saber relativo a outros que possuem outro saber relativo. É preciso saber quando os alunos sabem mais e fazer com que eles também saibam com humildade.
2) E isso não é válido apenas na sala de aula, porque, consciente ou inconscientemente, todas as relações humanas são sempre relações de aprendizagem. Mas, na sua filosofia, o processo de aprender e ensinar é inseparável do afeto e da amizade.
R: O amor é uma tarefa do sujeito. É falso dizer que o amor não espera retribuições. O amor é uma intercomunicação íntima de duas consciências que se respeitam. Cada um tem o outro como sujeito do seu amor. Não se trata de apropriar-se do outro. Nessa sociedade há uma ânsia de impor-se aos demais numa espécie de chantagem de amor. Isso é uma distorção do amor. Quem ama o faz amando os defeitos e as qualidades do ser amado. Ama-se na medida em que se busca comunicação. Não há educação sem amor. O amor implica luta contra o egoísmo. Quem não é capaz de amar os seres inacabados não é capaz de amar. Não há educação imposta, como não há amor imposto. Quem não ama não compreende o seu próximo, não o respeita.
3) Aceitar o fato de que o homem é incompleto e está em permanente construção nos permite, afinal, celebrar a vida assim como ela é…
R: Eu gosto de ser homem, de ser gente, porque não está dado como certo, inequívoco, irrevogável, que sou ou serei decente; que testemunharei sempre gestos puros, que sou e serei justo, que respeitarei os outros, que não mentirei escondendo o valor dos outros porque a inveja da sua presença no mundo me incomoda e me enraivece. Gosto de ser homem, de ser gente, porque sei que a minha passagem pelo mundo não é predeterminada, pré-estabelecida. Que o meu “destino” não é um dado mas algo que precisa ser feito e de cuja responsabilidade não posso me eximir. Gosto de ser gente porque a História em que me faço com os outros, e de cuja feitura tomo parte, é um tempo de possibilidades e não de determinismo. Daí que insista tanto na problematização do futuro, e recuse a sua inexorabilidade. Gosto de ser gente porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir mais além dele.
4) O que é, então, ensinar?
R: Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. Quando entro em uma sala de aula, devo estar sendo um ser aberto a indagações, à curiosidade, às perguntas dos alunos, a suas inibições; um ser crítico e inquiridor inquieto em face da tarefa que tenho – a de ensinar e não a de transferir conhecimento.
5) A sua filosofia da vida se baseia na ideia de que o ser humano é, basicamente, um aprendiz. Mas você também afirma que essa aprendizagem deve ser autônoma. Como você vê, então, o tradicional assistencialismo de governos que, de um lado, adotam políticas econômicas produtoras de desemprego e miséria, de acordo com a receita do Fundo Monetário Internacional, e, de outro lado, distribuem uns poucos alimentos aos miseráveis para combater a fome, quase sempre buscando obter ganhos eleitorais?
R: O grande perigo do assistencialismo está na violência do seu antidiálogo que, impondo ao homem o silêncio e a passividade, não lhe oferece condições especiais para o desenvolvimento ou a “abertura” da sua consciência, a qual, nas democracias autênticas, há de ser cada vez mais crítica.
Sem essa consciência cada vez mais crítica não será possível ao homem brasileiro integrar-se à sua sociedade em transição, intensamente mutável e contraditória.
Daí as relações do assistencialismo com a massificação, da qual é ao mesmo tempo efeito e causa. O que importa realmente, ao ajudar-se o homem, é ajudá-lo a ajudar-se. É fazê-lo agente da sua própria recuperação. É, repitamos, colocá-lo numa postura conscientemente crítica diante de seus problemas. O assistencialismo, ao contrário, é uma forma de ação que rouba ao homem condições para o atendimento de uma das necessidades fundamentais de sua alma – a responsabilidade.
6) Os manipuladores de poder têm o hábito de se apresentar como intermediários e “salvadores”, tanto na política como na religião; mas isso é falso. A libertação só pode ser um fruto da autorresponsabilidade, embora também resulte da ajuda mútua…
R: A meu ver, não é possível libertar o outro. Os homens não podem, sozinhos, libertarem-se a si mesmos, porque os homens libertam-se a si mesmos em comum, mediante a realidade que eles devem transformar. Assim, o processo de libertação não é um presente que eu dou a você. Acho que se pode dizer o mesmo em relação à salvação, do ponto de vista teológico.
7) Levando isso em conta, qual é a sua visão sobre Deus?
R: Creio que minha atitude não pode ser a de um homem vazio que espera ser preenchido pela palavra de Deus. (…) Em todas as dimensões da minha vida, de minha existência, posso encontrar a presença de Deus, mas a presença de Deus não significa a imposição de Deus. Deus está presente, mas sua presença não me impede de fazer a história, uma história de libertação humana.
Nota Bibliográfica:
As fontes das respostas acima são, respectivamente: 1) “Educação e Mudança”, Paulo Freire, Ed. Paz e Terra, RJ, 1983, 79 pp., ver pp. 28-29; 2) “Educação e Mudança”, obra citada, p. 29; 3) “Pedagogia da Autonomia”, Paulo Freire, Ed. Paz e Terra, RJ, 1996, 165 pp., ver pp. 58-59; 4) “Pedagogia da Autonomia”, obra citada, p. 52; 5) “Educação Como Prática da Liberdade”, Paulo Freire, Ed. Paz e Terra, RJ, 1983, 150 pp., ver pp. 57-58; 6) “Diálogo com Paulo Freire”, Carlos Alberto Torres, Ed. Loyola, SP, 1979, 87 pp., ver p. 34; 7) “Diálogo com Paulo Freire”, obra citada, ver pp. 38-39.
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O texto “Paulo Freire e Uma Chave Para o Futuro”, capítulo da obra “Conversas na Biblioteca”, foi publicado nos websites associados dia 17 de dezembro de 2019.
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Leia os artigos “Superando o Erro de Rousseau” e “Esquerda, Ética e Fraternidade”.
Recomendamos “A Teosofia e os Conflitos Sociais”, de C.C. Aveline; “Filosofia do Direito e Colonialismo Cultural”, do Senador Franco Montoro; “Marxismo Não Promove o Crime”, de C.C. Aveline, “A Bancarrota do Partido dos Trabalhadores”, de Luciana Genro e Roberto Robaina, e “O Globalismo e a Fraternidade”, de CCA.
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