Uma Experiência de Unidade Pessoal com
a Natureza nas Nascentes do Rio dos Sinos
Carlos Cardoso Aveline
Uma cachoeira nas nascentes do rio dos Sinos
Disputado no verão, o camping da pequena praia de João Fernandes, na região das nascentes do Rio dos Sinos, está deserto na tarde fria de outono. O ar é puro, a mata nativa fechada protege as margens do rio, e não há sinais de cidade por perto: nem ruídos, nem automóveis, exceto o Fusca branco que me trouxe até aqui.
“Tudo o que se move precisa, de quando em quando, fazer paradas”, observou em 1890 um velho sábio dos índios dakota, nos Estados Unidos. “O pássaro suspende o voo num lugar para fazer o ninho e num outro para descansar (…). O Sol, tão belo e brilhante, é um lugar onde o deus parou. Do mesmo modo a Lua, as estrelas e os ventos.” [1]
Mais de um século depois dessas palavras, estou completamente imóvel, atento ao murmúrio das águas e ao ruído do vento nas folhas das árvores. Não faço qualquer movimento, para não quebrar o encanto.
O leito do rio está coberto de pedras arredondadas pela água. Há neste ponto uma corredeira; uma grande concentração de pedras torna o rio impetuoso. O som envolvente das águas deixa em segundo plano a virtude contemplativa das frondosas árvores sob as quais o rio desfila há séculos.
“Quando eu tinha 10 anos”, disse o feiticeiro sioux Búfalo Bravo, no começo do século vinte, “olhei a terra, os rios, o céu e os animais ao meu redor, e não pude deixar de ver que eles provinham de algum grande poder.” [2]
Quando sentei aqui só as águas faziam música. Não havia animais à vista. Há dois minutos, enquanto involuntariamente ampliava-se minha consciência, um pássaro próximo empreendeu um longo cântico que se somou e se sobrepôs ao ritmo envolvente da água encachoeirada nas pedras. Olhei para o lado, como para reconhecer o cenário, e vi um pato banhando-se muito perto, sossegadamente. Mais distante e cauteloso, outro pato ocultava-se parcialmente entre bambus.
Ainda não são 16 horas, mas os primeiros mosquitos comparecem para um reconhecimento da temperatura média do meu corpo físico, assim como do seu suor e sua disponibilidade para suportar algumas picadas.
Sinto o perfume da mata nativa e o cheiro vital das águas até há pouco verdes, mas agora escuras porque a tarde já cai. No céu, o Sol ainda brilha e as nuvens movem-se imperceptivelmente.
Visto à distância, sou apenas um integrante imóvel e anônimo deste cenário de águas faladoras e pedras imponentes. Mas posso sentir a força misteriosa da natureza de que falava o feiticeiro sioux.
“Fiquei tão ansioso para conhecer aquele poder”, contou Búfalo Bravo, “que comecei a indagar às árvores e arbustos (…) até que adormeci; e em um sonho uma pequena pedra redonda me disse que minha curiosidade me havia tornado merecedor de ajuda…”.
Búfalo Bravo escreveu que certas pedras são redondas como o Sol e a Lua. Para ele, todas as coisas redondas estão relacionadas entre si. Ele conversava com estas pedras que estavam “há muito tempo olhando para o Sol”.
Quando fico observando com a mente imóvel o desfile encrespado da água pelas pedras, percebo a força deste local com mais intensidade do que quando penso conscientemente sobre o significado de cada coisa que me rodeia. Imerso em um sentimento de reverência, respiro lenta e profundamente, como se estivesse bebendo ar pelas narinas. “Não especule, mas respire plenamente”, ordeno a mim mesmo.
Mais tarde, quando me ergo com pesar e saio desta paisagem para ir até outro trecho do rio, levo comigo uma pedra. Ela é arredondada. Irá fazer parte da minha biblioteca.
Enquanto me afasto das águas, um quero-quero caminha pelo descampado com majestosa dignidade. Fico com o olhar parado em um ponto qualquer da paisagem enquanto minha consciência se expande. “Só quem já viveu na cidade pode compreender todo o valor da paz existente no campo”, penso comigo mesmo.
“Esta água brilhante que corre nos riachos e rios não é somente água, mas o sangue de nossos antepassados”, escreveu em 1855 o chefe Seattle, dos índios duwamish, ao presidente norte-americano que queria comprar as terras indígenas. “Se lhes vendermos as terras, vocês devem lembrar-se de que ela é sagrada e devem ensinar às suas crianças que ela é sagrada; e que cada reflexo do espírito na água cristalina dos lagos revela acontecimentos e lembranças da vida do meu povo.” [3]
Este texto constitui talvez o mais importante manifesto ecológico de todos os tempos: “Os rios são nossos irmãos, eles saciam nossa sede”, prosseguiu o cacique Seattle. “Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e ensinar às suas crianças que os rios são nossos irmãos, e seus também. E vocês devem, daqui em diante, dar aos rios o tratamento que dariam a qualquer irmão.”
Protegidas pelo Código Florestal Federal e pela Lei 7.754, as nascentes dos rios brasileiros encontram-se em perigo e só permanecem em grande parte intocadas porque estão quase sempre em locais de difícil acesso. Enquanto as nascentes estiverem preservadas, basta controlar as fontes de poluição nas regiões industriais mais abaixo e interromper o desmatamento e a agricultura predatória dos agrotóxicos para que a qualidade das águas da bacia hidrográfica se recupere naturalmente. As nascentes simbolizam a autorrenovação de um rio.
Agora estou mais acima, onde já não circulam carros e o acesso de pessoas é restrito. Mas há aqui um contraste entristecedor: o homem do campo continua abandonando tudo em troca da cidade e a área desmatada é cada dia maior. Mesmo esta região relativamente preservada, vista por muitos como um santuário natural, já recebe visitantes demasiadamente numerosos. Alguns deles são barulhentos. Outros trazem bebidas alcoólicas ou deixam lixo por aqui. Às vezes, ligam a todo volume seus aparelhos de som, reproduzindo inconscientemente a neurose urbana e revelando sua própria incapacidade de aceitar a música do silêncio.
Neste entardecer, no entanto, há sossego. Um bando de pequenos pássaros sobrevoa a dez ou vinte metros de altura o lugar em que caminho lentamente morro acima. Vão em busca das encostas íngremes da serra onde há grandes extensões de mata fechada. A luz do Sol dá lugar gradualmente à noite, enquanto avanço para o local de uma primeira cachoeira de águas límpidas. Recolho água na palma da mão, bebo-a e lavo o rosto. Este ato simples me faz sentir tão bem que repito a operação meia dúzia de vezes, lenta e determinadamente, como num ritual. Ao erguer-me, já me parece ter chegado ao local muito tempo antes. Acompanha-me a sensação de que tudo o que existe, dentro e fora da vida humana, está em paz.
“Se o universo inteiro está na mais perfeita ordem, por que eu deveria ter pressa?”, pergunta uma folha de papel colocada em lugar visível, entre meus livros, na cidade. É exatamente a sensação que tenho enquanto caminho à beira do rio sob as árvores, coberto por uma noite luminosa.
Mais tarde, na cabana, durmo no sótão rústico depois de ganhar um prato de sopa de um grupo de jovens cristãos em visita ao local. Pela manhã, primeiro o café com leite e chocolate quente, o estudo e a meditação e, então, a caminhada morro acima, de volta à complexa rede de riachos que se reúnem na região para formar o rio. Segundo minha experiência, o som da água é o portal de acesso para um estado de espírito de comunhão com o rio.
Assim como o mantra “Om” dos hindus significa o fluxo da manifestação do universo, também o som das águas das nascentes parece dar o impulso inicial do rio, em sua longa marcha através do continente até o oceano, onde o ciclo eterno das águas recomeçará com a evaporação causada pelo calor do Sol. O “Om” das nascentes não cessa. Ele magnetiza as águas fazendo-as bater de pedra em pedra e criando uma espuma branca que se desfaz a cada instante. Avanço lentamente pelo riacho, atraído pela visão de um pequeno pássaro que bebe água, até que decido instalar-me, muito à vontade, numa espécie de poltrona formada por duas rochas cobertas de musgo, a meio metro do murmúrio das águas.
Será correta a imagem de que as águas falam? Para quem se sente em unidade com a natureza, a resposta pode ser afirmativa. O rio que banha a capital peruana, por exemplo, chama-se Rímac, literalmente, “o rio falador”. Mal pronunciada pelos espanhóis, foi esta palavra quéchua que deu origem ao nome da cidade de Lima.
Talvez o Rímac fale ainda hoje da tristeza do povo andino, cuja cultura foi em grande parte suprimida pelos colonizadores europeus. Mas a percepção de um rio como um ser vivo que fala em linguagem não-verbal diretamente a um nível mais interior da consciência do ser humano está presente em diferentes tradições. “O murmúrio das águas é a voz dos meus ancestrais”, afirmou o velho chefe Seattle. Nos Vedas hindus, está escrito: “Esta água carrega em seu útero o fogo dourado que governa a vida. Que as chamas sem forma nascidas desta água possam distribuir bênçãos e prosperidade sobre nós!”
No Manuscrito Huarochirí, que retrata a tradição andina, a montanha é o princípio masculino que fertiliza através dos rios a terra dos vales. Os rios, com suas nascentes próximas ao céu e formadas com a água das chuvas, são de certa forma mensageiros dos deuses. Para os quéchuas, as montanhas eram sagradas. É o caso de Paria Caca, que, com seu pico coberto de neve, dá origem às águas que garantem a agricultura e toda a vida dos vales abaixo. A própria Via Láctea é descrita como um curso hídrico, conforme vimos no capítulo nove.[4] A galáxia em que vive nosso sistema solar é, segundo aquele documento Huarochirí, “um rio de estrelas”.[5]
Para alguns, a natureza pode ser vista como uma parábola dos ensinamentos da sabedoria eterna. Estou quase deitado como numa poltrona, sob o Sol, em meio a um mato baixo, e sinto o cheiro das ervas que me circundam e me convidam a respirar mais fundo. O som das águas está agora poucos metros mais abaixo. Deito e durmo entre as folhas verdes e sonho com uma dança religiosa hindu. No sonho, ouço palavras em sânscrito, mas acordo com o canto de um pássaro. Quando você medita ou ora na natureza, cânticos e aparições de pássaros são parte significativa do todo. Cada pequeno acontecimento pode ter uma mensagem para seu mundo interno porque, quando espiritualmente desperto, você é capaz de perceber a inteligência em muitas manifestações não-verbais. Tudo está vinculado a tudo, no mesmo instante.
A situação dos nossos rios reflete o estágio atual de evolução da mente humana. A parte baixa dos rios está poluída. Mas a parte alta das bacias hidrográficas é como as regiões superiores do espírito do homem, de onde jorram sempre as percepções mais elevadas da realidade, inspirando e dando vida ao conjunto do processo humano. Lá no alto está a energia pura dos ensinamentos de Cristo, Buda, Pitágoras e de outros “irmãos mais velhos” que continuam protegendo a humanidade. Interiormente renovado, encerro meu breve retiro junto ao rio meditando sobre algumas palavras atribuídas a Nagarjuna, o filósofo budista do século dois:
Há quatro tipos de pessoas:
As que vão da luz para a luz,
As que vão da escuridão para a escuridão,
As que vão da luz para a escuridão
E as que vão da escuridão para a luz.
Seja você integrante do primeiro grupo. [6]
E é assim que você se sente, caminhando pela região das nascentes de um rio brasileiro qualquer. Avançando de paz em paz.
Exercício Prático:
Aprendendo a Conviver com a Natureza
Para quem sai pela natureza, a primeira recomendação é não fazer barulho, mas, ao contrário, ouvir os animais. Quando há um grupo ruidoso de pessoas, é possível ver um grande número de animais fugindo do local assustados. Se você fica imóvel e tranquilo, no princípio o local pode parecer deserto, porém, aos poucos, os sinais de vida animal se multiplicam ao seu redor. Os pássaros, por exemplo, são animais curiosos, e muitos deles terão certo interesse por você, perdendo gradualmente o medo. Os animais podem detectar a presença de um ser humano que não lhes causará dano ou ameaça. Manter uma dieta vegetariana tornará mais fácil esta sintonia fina.
No começo, você ouvirá e depois, eventualmente, verá os animais. Além disso, estar na natureza acalma, energiza e dá um magnetismo revitalizante a qualquer amigo sincero do ambiente natural.
Leve um livro adequado a uma leitura meditativa e vincule o que você lê ao que vê e sente, dentro e fora de si mesmo.
Carregue consigo um ou dois sacos plásticos para guardar neles não só o seu próprio lixo, mas também outros detritos que porventura encontre pelo caminho. Cooperar com a preservação da natureza abre – psicológica e ocultamente – as portas para um convívio mais profundo e enriquecedor com ela. Não importa, no entanto, se você não puder recolher todo o lixo dos outros. O importante é que aquele lugar fique tão bem quanto (ou um pouco melhor do que) estava antes de sua visita. Nossa vida inteira deveria, aliás, ter o mesmo objetivo em relação ao mundo. Afinal, uma vida é como uma visita ao planeta.
NOTAS:
[1] “Pés Nus Sobre a Terra Sagrada “, um impressionante autorretrato dos Índios Norte-americanos. Compilado por T. C. McLuhan, Editora L&PM, ver p. 32.
[2] Obra acima citada, p. 20.
[3] “Preservação do Meio Ambiente – Manifesto do Chefe Seattle ao Presidente dos EUA”, Editora Interação, 1989, São Paulo, SP.
[4] Referência ao capítulo anterior da obra “A Vida Secreta da Natureza”, intitulado “A Metamorfose de um Funcionário Público” e também disponível online.
[5] “The Huarochirí Manuscript” – A Testament of Ancient and Colonial Andean Religion, University of Texas Press, Austin, EUA, ver p. 132.
[6] “A Letter to a Friend”, Nagarjuna, traduzido do tibetano por Leslie Kawamura, Dharma Publishing, Berkeley, Califórnia, EUA, ver p. 21.
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“O Poder Oculto dos Rios” está disponível nos websites associados desde o dia 28 de julho de 2021. O texto é uma reprodução do capítulo dez da obra “A Vida Secreta da Natureza”, de Carlos Cardoso Aveline, terceira edição, 2007, Ed. Bodigaya, Porto Alegre, 157 páginas.
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Leia mais:
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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