Aprenda a Ajustar os Exercícios
de Treinamento da Sua Vontade
Jean des Vignes Rouges
“A vontade, e eu repito isso com
frequência, consiste em estabelecer uma certa
concepção de vida e submeter a ela as nossas ações.”
Já foi dito e repetido em todos os tons: “o homem é um pacote ambulante de hábitos”. Os fisiologistas demonstraram que qualquer movimento nosso depende de uma certa organização dos neurônios, a qual é criada por operações repetidas. Os psicólogos explicaram que cada paixão, virtude, ou vício é apenas o hábito de saborear determinados prazeres; os pedagogos visam dar à criança bons hábitos de pensamento e ação; os atletas só falam em treino para bater recordes; os fabricantes se esforçam para aperfeiçoar o aprendizado. Os pais exigem que seus filhos “bem-educados” conheçam e repitam sem erro todos os rituais da gentileza, etc. Em resumo, tudo o que o homem faz, ele aprendeu; exceto ações como digerir, suar, respirar, etc., que são hábitos da espécie. E no entanto! Até mesmo essas funções da vida vegetativa podem ser alteradas, havendo cuidado, paciência e tempo.
Podemos, portanto, considerar que educar a vontade significa desenvolver bons hábitos. Mas quais? Bem, todos aqueles aos quais podemos dar os nomes das qualidades que desejamos possuir: o espírito de iniciativa, a coragem, o autocontrole, a perseverança, o gosto pelo trabalho, a eficiência, o equilíbrio, o gosto pela ordem, o discernimento, a firmeza do estado de espírito, a prudência, a naturalidade das atitudes, a segurança, o entusiasmo, a resistência ao cansaço, a gentileza, a violência, etc. Sim, todas essas virtudes, esses modos de ser, de sentir, de pensar, de agir, cuja lista poderia ocupar várias páginas, devem ser considerados por você como hábitos a serem adquiridos através de um treinamento especial, assim como a aptidão para patinar, para degustar bons vinhos [1] e para fazer amigos.
Isso me leva a indicar as regras gerais a serem seguidas para estabelecer um bom hábito em sua vida. Aqui estão elas:
I – Imagine uma série de exercícios que você fará para desenvolver uma determinada qualidade. Neste livro [2] dou muitos exemplos de exercícios de treinamento que você adotará com proveito, mas nem é preciso dizer que você está livre para inventar outros. Todo tipo de atividade é útil para isso. No seu trabalho profissional, nos seus passeios, nas suas diversões, nos seus estudos, você sempre pode, com um pouco de criatividade, transformar alguma das suas ações em um exercício de treinamento para desenvolver uma qualidade específica.
Assim, por exemplo, ao escrever uma carta à mão, decida que a sua escrita não mudará em sua forma, aparência, etc., desde o início da missiva até o final; não ceda a nenhuma impaciência da caneta; este será um exercício de autocontrole. A maneira como você levanta o chapéu, ao cumprimentar alguém na rua [3], pode se tornar um treinamento da sua autoconfiança, se você se dedicar a realizar esse gesto de uma certa maneira e se associar a ele a intenção de expressar uma determinada nuance do sentimento de dignidade.
Estes “exercícios” são, do ponto de vista psicológico, estímulos que provocam a atividade e o desenvolvimento da qualidade desejada.
II – Fortalecemos um hábito repetindo frequentemente as ações correspondentes a ele. Podemos supor que esta repetição de atos cria uma associação dos neurônios, na qual uma certa quantidade de impulsos nervosos se acumulará e fluirá, criando uma necessidade de agir. Esta necessidade de agir é a base do que tem sido chamado de tirania do hábito.
É recomendável que a repetição dos atos destinados a formar um hábito seja feita em intervalos de tempo regulares e iguais, porque o organismo busca sempre seguir um certo ritmo na realização dos seus esforços.
III – No entanto, não basta a repetição mecânica. Para que o hábito se estabeleça no corpo de maneira rápida e eficiente, você deve ter a intenção de torná-lo seu, isto é, deve adotar um estado de espírito que o faça desejar esse hábito.
IV – Saiba, portanto, que você acelerará consideravelmente o estabelecimento de um hábito se fizer um esforço para adquiri-lo. A sua sensibilidade, o seu desejo, violentamente estimulados, entrarão em ação. Essa mobilização de todo o seu corpo o capacita para receber e para manter o hábito.
V – É por isso que em certos casos, sob a influência de uma emoção violenta, ou de uma determinação intensa, podemos contrair um hábito quase instantaneamente. Vemos pessoas medrosas que de repente, após um único ato de coragem, se tornam corajosas. Na verdade, essas pessoas não sabiam que tinham essa habilidade. Uma vez que o acontecimento lhes revelou a sua inclinação para a ousadia – até agora reprimida por medos ilusórios – passam a ser corajosas pelo resto da vida.
VI – Porém, não conte muito com essas aquisições rápidas de hábitos, porque elas são exceções. Está cientificamente comprovado que uma certa lentidão é necessária nos esforços de fixação. Para que o hábito “amadureça” de forma mais rápida e eficaz, os neurônios devem ter tempo para organizar a estrutura do hábito. Uma repetição muito precipitada causará fadiga e dificultará o registro. Em relação aos exercícios realizados para adquirir uma qualidade considerada “moral” – como autocontrole, coragem, perseverança, etc. – parece que o intervalo ideal é de 24 horas.
VII – A observação acima também comprova o seguinte: é sábio esperar que haja períodos de “seca” durante as práticas de treinamento. Neles, nenhum progresso é evidente. Você fica arrependido, desanimado, pensa em desistir de tudo. Diga a si mesmo, então, que as combinações de tendências que constituem o hábito precisam de um prazo de espera. Deixe que o organismo realize o seu trabalho misterioso. Muitas vezes você terá a surpresa agradável de perceber que, sem que tivesse pensado nisso, dá um salto significativo em direção ao objetivo traçado. Neste caso o amadurecimento do hábito aconteceu de repente, como o de uma pêra, da noite para o dia. Não diz o ditado que os nadadores medíocres do outono alcançam uma ótima forma depois do inverno?
VIII – Escolha horários favoráveis para realizar os exercícios. Se estiver cansado, adie seu esforço para mais tarde. Mas assegure-se de que este “deixar para amanhã” não se transformará num hábito de agir como covarde preguiçoso.
IX – Evite “interferências”. Em outras palavras, não tente desenvolver em si mesmo, simultaneamente, qualidades contraditórias. Depois de realizar exercícios destinados a adquirir hábitos como a modéstia, não pratique nenhum outro treinamento que possa desenvolver orgulho, mesmo que você o descreva como apenas um sentimento de dignidade.
X – Uma vez que não existe possibilidade de interferência ou conflito, evite multiplicar exageradamente as sessões do teinamento. Todos os esforços feitos de modo impensado seriam neutralizados, e o desinteresse viria rapidamente. Os exercícios acumulados sem método provocariam um tédio que iria enfraquecer o seu desejo de aperfeiçoar a vontade.
XI – Pela mesma razão, procure variar os exercícios. Eles são estímulos destinados a fortalecer através do hábito a tendência que você deseja desenvolver. Porém, você sabe que qualquer estímulo repetido de maneira monótona causa cansaço e se torna inclusive irritante.
É para atender a esta necessidade de mudança nos exercícios que indico nesta obra tantas fórmulas, tantos procedimentos e tantos “truques”. Não convém utilizá-los simultaneamente, mas sim no momento oportuno, de modo a variar os esforços que você faz para educar a sua vontade.
XII – Finalmente, tenha a certeza de que, ao contrário do que diz o pensamento da maioria, a idade não é obstáculo à aquisição de novos hábitos. Quantas pessoas já não se condenaram à decadência prematura, dizendo que eram demasiado velhas para se adaptarem, para se treinarem, para se modificarem! Infelizes os que acreditaram nisso! Renunciando ao exercício da sua vontade, perderam os hábitos que os faziam viver e não aspiram a outra coisa além da morte. Sem dúvida, o ser humano, à medida que envelhece, deve abandonar muitos dos seus hábitos. Mas ele deve substituí-los por outros, adequados para as suas possibilidades fisiológicas e para as suas necessidades.
XIII – O hábito mais importante que devemos adquirir é o de querer, porque a própria vontade é, até certo ponto, um hábito. Nós nos acostumamos então a decidir com rapidez, a fazer um esforço, a trabalhar intensamente, etc., e – sobretudo – a submeter a nossa própria conduta a determinados princípios norteadores que adotamos para sempre.
A vontade, e eu repito isso com frequência, consiste em estabelecer uma certa concepção de vida e submeter a ela as nossas ações. Pois bem: esse confronto, essa união entre aquilo em que você acredita e a ação que você quer realizar, também depende do hábito.
Sejam quais forem as circunstâncias em que você se encontra, tenha, portanto, este hábito funcionando por reflexo; o hábito de evocar os seus princípios antes de agir.
– “Você aceita?” Pergunta-lhe um colega de negócios. “Você avança? Você dá sua palavra? O seu dinheiro? Você se compromete?”
Situações semelhantes devem desencadear de imediato a “reação de confronto” com os seus princípios. Se você não tornou isso fácil através do hábito, será surpreendido e pode ser enganado. Depois de agir, arrancará os cabelos de tanto arrependimento, rancor, remorso, e irá suspirar: “Por que porcaria eu entrei nesse negócio?” Falta de hábito, meu caro senhor! Você não se acostumou a colocar um motivo mais elevado acima de todos os outros motivos, para inspecioná-los, monitorá-los, controlá-los e direcioná-los. Treine-se para ter vontade própria; será melhor do que roer as unhas ou choramingar.
NOTAS:
[1] Jean des Vignes Rouges nasceu em uma família de produtores rurais de vinhos, em França. Em teosofia, recomenda-se manter distância de qualquer bebida alcoólica. Veja o artigo “A Teosofia, o Álcool e as Drogas”. (CCA)
[2] Os dados bibliográficos do livro que JVR menciona estão indicados mais abaixo. Você também pode ver um número significativo de escritos deste autor nos websites da Loja Independente de Teosofistas: clique aqui em Jean des Vignes Rouges. (CCA)
[3] O presente texto foi escrito na década de 1940. (CCA)
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Jean des Vignes Rouges é o pseudônimo literário do militar e escritor francês Jean Taboureau (1879-1970).
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O artigo “O Hábito, a Intenção e a Vontade” está publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas desde 09 de janeiro de 2024. Foi traduzido do livro “Dictionnaire de la Volonté”, de Jean des Vignes Rouges, Éditions J. Oliven, Paris, 319 pp., 1945, pp. 158-161. A tradução é de Carlos Cardoso Aveline. Veja o texto original em francês: “L’Habitude, l’Intention et la Volonté”.
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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