A Felicidade Não Está em Fugir do
Sofrimento, Mas em Ser Maior do que Ele
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
 
 
O livro “O Feliz Independente”, de Theodoro D’Almeida, é uma obra-prima da literatura e da filosofia em língua portuguesa.
 
Romance filosófico publicado em Lisboa em três volumes em 1786, a narrativa propõe a felicidade como um processo estoico de confiança na vida. Ensina que não se deve dar demasiada atenção às dificuldades e sofrimentos do eu inferior.
 
A dor, conforme Almeida demonstra, serve para empurrar-nos na direção da sabedoria. A felicidade não está em fugir do sofrimento, mas em ser maior do que ele, e eliminar dentro do possível as suas causas, adotando um estilo de vida simples, sem grandes pretensões.
 
Um ponto central para Theodoro D’Almeida (1722-1804) é que devemos ter confiança na Lei do Carma e do Equilíbrio, a Lei única do Universo, que ele chama de Providência e de Deus.
 
A Providência não é cega. Ela guia de modo eficiente o processo evolutivo inteiro. Na vida nada ocorre ao azar. Cabe, portanto, fazer o melhor e confiar na Lei.
 
Em determinado momento, um dos personagens centrais da obra, Misseno, diz a dois amigos:
 
“Meus filhos, crede que muito mais deve cuidar em nós a Providência, do que cuida no seu filho tenro qualquer mãe amorosa; porque nós mais somos de Deus, Autor do nosso Ser, que dos pais, que somente foram os instrumentos. A Mão Todo-Poderosa foi quem tirou do insondável abismo do nada este espírito, que nos anima; e ela foi quem por uma série de maravilhas encadeadas, até agora incompreensíveis aos maiores Sábios do mundo, coordenou os órgãos do nosso corpo, e formou estes membros, de que gozamos. O seu poder nos protege, a sua força nos sustenta, a sua lei nos guia, a sua beneficência nos favorece, a sua liberalidade nos regala. E credes que se nos entregarmos ao seu paternal cuidado, a sua Providência se descuidará?” [1]
 
O Mantra do Contentamento
 
Para Theodoro, “Deus” não está situado exclusivamente fora do ser humano. O mundo divino e a fonte da felicidade são realidades tanto internas como externas. E só podem ser encontrados no universo externo se forem percebidos antes em nosso interior, ou, no mínimo, ao mesmo tempo dentro e fora de nós. Daí a ideia da onipresença do mundo sagrado. Podemos não percebê-la, mas ela existe. A energia divina está por toda parte, porque está presente em cada átomo, conforme ensinam a teosofia e as principais religiões.  
 
Em determinado momento Theodoro aborda o mistério da confiança através de versos que funcionam como um mantra. E arremata a explicação com uma nota de rodapé. Antes de ver o poema, cabe lembrar que em teosofia “Deus” significa não só a Lei Impessoal e Suprema do Universo, mas também a nossa própria alma espiritual:
 
“Se de Deus é que nasce qualquer bem,
A alegria que busco, de onde vem?
Não está longe de mim [2], não vem de fora,
Vem do meu coração, onde Deus mora,
Dentro em mim tenho Deus, e tenho a Graça,
Tenho a Lei. Que me faz qualquer desgraça?” [3]
 
Não por acaso o poema termina com a ideia teosófica da Lei.
 
A “Escada Para o Céu” do Mundo Lusófono
 
“O Feliz Independente” é um ponto alto do Iluminismo português, mas não só português. Quando o romance foi publicado, Portugal era também Brasil, era Angola, era Moçambique e todo o mundo lusófono. A obra fez sucesso em outros idiomas, sendo um best-seller clássico na Espanha, com mais edições em espanhol que em português.
 
Portugal é hoje e continuará sendo o principal centro histórico e espiritual do mundo da língua portuguesa. Cedo ou tarde a importância deste fato será reconhecida em Portugal e nas outras nações lusófonas. Basta acordar do pesadelo materialista-consumista e das ilusões tecnocráticas, cuja influência atual tem mais de um aspecto desumanizante.
 
A filosofia cristã e clássica de Portugal – a filosofia vista como sabedoria vivencial e como arte de viver – é das mais ricas da Europa e portanto do Ocidente. Constitui um antahkarana coletivo para a comunidade das nações de língua portuguesa, uma “escada para o céu” que surge da nossa própria cultura e está alicerçada em nossa essência e nossa história.
 
Pensadores como São Martinho Bracarense e Pascácio de Dume, como o franciscano Santo António (de Lisboa e Pádua), como Álvaro Gomes, Frei Heitor Pinto, Leão Hebreu, Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Diogo de Paiva de Andrade, Theodoro D’Almeida e outros, lidos a partir da visão de mundo de Helena Blavatsky, adquirem uma dimensão luminosa no passeio dos séculos. E suas obras são reconhecidas como instrumentos práticos na construção de um futuro saudável.
 
A tarefa de alcançar coletivamente a luz espiritual é difícil. E se não fosse difícil não haveria mérito. Em toda construção, uma ideia-chave é ter confiança. Não vale a pena deixar-se hipnotizar por este ou aquele obstáculo que as energias negativas querem, talvez, que consideremos “intransponível”.  
 
A prudência cumpre papel fundamental, mas o medo supersticioso é desnecessário, assim como o rancor e a inveja. O otimismo de D’Almeida abre as portas para o futuro e é especialmente necessário no século 21.
 
Um pouco de coragem não faz mal a ninguém.
 
Quando abrimos os olhos, ganhamos discernimento e passamos a confiar na vida. As derrotas servem para aprender lições e fortalecer a vontade. Neste sentido, a alma espiritual não perde batalha alguma, mas as ganha todas.
 
NOTAS:
 
[1] “O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna, ou a Arte de Viver Contente em Quaisquer Trabalhos da Vida”, romance filosófico de Theodoro D’Almeida, membro da Congregação do Oratório, Lisboa, Regia Officina Typografica, 1786, obra em três volumes, ver volume I, pp. 161-162.
 
[2] Aqui, uma nota de rodapé de Theodoro convida o leitor a ler Atos, 17: 27-28: a divindade não está longe, nela nós vivemos, nela nos movemos, nela existimos. A ideia é cem por cento teosófica e blavatskiana.
 
[3] Esta oração e mantra é reproduzida de “O Feliz Independente do Mundo e da Fortuna”, de Theodoro D’Almeida, obra citada, volume I, pp. 99-100. A ortografia foi atualizada.
 
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O artigo “Theodoro D’Almeida – Confiar na Vida” reúne material publicado inicialmente nas páginas 1 a 3 da edição de maio de 2024 de “O Teosofista”, sob os títulos “Confiar na Lei, Confiar na Vida” e “O Mantra do Contentamento”. O oratoriano Theodoro D’Almeida (foto) viveu de 1722 a 1804.
 
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Leituras recomendadas:
 
* Corpo e Alma, Cavalo e Cavaleiro (texto de Theodoro D’Almeida).
 
 
* Regra da Vida Honesta (tratado estoico clássico de Martinho Bracarense).
 
 
 
 
 
* João de Deus, Louco, Santo, e Sábio (Como a Ruptura da Rotina Psicológica Pode Abrir as Portas Para a Vida Mística).
 
* Examine a Seção Temática Cristianismo e Teosofia.
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
 
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