O Afeto Verdadeiro
Não Depende de Recompensas
Theosophy
Talvez a fraternidade constitua a essência do amor
0000000000000000000000000000000000000000
O artigo a seguir foi publicado pela
primeira vez na revista “Theosophy”, de Los
Angeles, em sua edição de fevereiro de 1950, pp.
163-167. O título original é “Love and Illusion”.
0000000000000000000000000000000000000000000000000
O amor verdadeiro é tão difícil de encontrar como a própria sabedoria. Talvez, afinal de contas, este seja o objetivo da sabedoria, e talvez o amor seja algo que só pode ser obtido através da sabedoria?
Pelo menos, embora seja tema de conversas por todo lado e seja buscado por jovens e velhos, o amor evita os seus buscadores mais ardentes e parece favorecer os seus candidatos mais improváveis. No entanto, todos os que sabem o que é um amor verdadeiro e durável têm certas qualidades em comum. Idade, sexo, características sociais e raciais, educação e condições econômicas não alteram o fato central de que aqueles que amam profundamente têm naturezas fortes e generosas, e se caracterizam por grande integridade, honestidade, sinceridade e altruísmo.
Pode ser o amor entre os pais e a criança, entre o homem e a esposa, ou entre o irmão e a irmã. E pode ser o amor de uma amizade duradoura ou a relação entre o mestre e o discípulo. Aqueles que amam podem viver na mesma casa ou no outro lado do globo terrestre; ou o amor pode ser dirigido a alguém muito distante no tempo, que é reconhecido apenas através da corrente que flui pela palavra escrita. O contato pode ser estreito e frequente, raro e imprevisível, ou completamente intangível. O amor, quando é a energia dominante, não pode ser limitado por condição alguma: ele domina o tempo, o espaço, a mente e a matéria.
É comum associar o amor com as emoções, e de vez em quando com a mente, algumas vezes com a alma – embora esta última seja descrita de forma vaga. A emoção do amor foi completamente examinada pelos especialistas em psicologia de vários séculos, e cada geração a investiga novamente. Na verdade, o investigador individual pode repetir muitas vezes na mesma encarnação a sua rendição impulsiva ao “amor”, aparentemente sem determinar de modo satisfatório para si mesmo qual é a sua verdadeira natureza. O sonho de uma emoção vitoriosa de amor é o ingrediente principal de muitas novelas, contos e romances populares e, indiretamente, o leitor continua a buscar pelo prêmio que ainda fascina mas nunca é alcançado.
A História e a experiência estão longe de haver demonstrado que o êxtase emocional é um começo inteligente para a exigente relação do casamento. Além disso, tem havido exemplos surpreendentes de casamentos felizes que não ocorreram através de preferências pessoais, mas para satisfazer necessidades muito diferentes. No entanto, a ideia de recomendar que o casamento tenha como razões primordiais o dever e a responsabilidade seria pouco aplaudida entre os povos ocidentais. Os norte-americanos, especialmente, parecem sentir que a busca da felicidade (seu direito inalienável e, ao mesmo tempo, o seu esforço mais desesperado) consiste – principalmente, se não exclusivamente – em “assumir os riscos da loteria, já que há muito mais alvos do que prêmios”, como H. P. Blavatsky assinalou certa vez. Hoje, quando uma estimativa calcula que setenta e cinco por cento dos casamentos norte-americanos terminam em divórcio, só podemos ficar surpresos com a força de uma superstição que é mantida por resultados tão pouco favoráveis.
Que outro tipo de amor existe?
Devemos considerar as intensidades ilusórias da paixão, que às vezes escondem o desejo puramente egoísta de conquista e posse? Neste caso o “amor” não é garantia de que não haverá ódio e crueldade em relação ao objeto de tais “afetos”.
Devemos incluir os casos de simples paixões tolas e de fantasias capazes de apagar todas as considerações racionais? Com que base, já que emoções primariamente irracionais não podem beneficiar intencionalmente nem os seus sujeitos, nem os seus objetos? A filosofia, propriamente falando, lida apenas com as atitudes da mente; com questões sujeitas ao pensamento e que se supõe que serão melhoradas por um tipo diferente de pensamento, por uma outra atitude mental. O mistério do amor é dificilmente percebido por aqueles que não se perguntam sobre a sua origem, não examinam o seu poder, e não tentam através da imaginação e da vontade erguer o seu amor até a potência mais elevada.
Exceto no caso das suas expressões mais elevadas, talvez o amor seja como o “Grande Enganador” descrito figurativamente em “A Voz do Silêncio”[1].
Três Salões devem ser percorridos, segundo aquela obra, antes que a “grande e terrível heresia da Separatividade” seja superada por completo. Primeiro, o Salão da Ignorância, que é atravessado em segurança quando a mente já não confunde “os fogos da luxúria que ardem ali com a luz do sol da vida”. Depois há o Salão do Aprendizado. Nele o neófito encontra as flores da vida, “mas sob cada flor haverá uma serpente enroscada”, e ele é aconselhado:
“Os SÁBIOS não se demoram nas regiões prazenteiras dos sentidos. Os SÁBIOS não dão atenção às vozes encantadoras da ilusão. Busca por aquele que te fará nascer no Salão da Sabedoria, o Salão que está mais além. Nele todas as sombras são desconhecidas, e a luz da verdade brilha com uma glória que jamais perde sua força.”
O Salão do Aprendizado é o lugar da provação da alma. É o perigoso reino de Mara, no qual existe a luz enganosa do conhecimento parcial. Nele deve ser enfrentada e vencida “a fascinação que o vício exerce sobre certas naturezas”. A radiação ilusória lança sobre a tela mental a escuridão de imagens incertas e os demônios zombeteiros do pensamento inseguro. “Ela domina os sentidos, cega a mente, e deixa o imprudente abandonado e destruído.” A saída está no caminho que leva à integridade da mente e ao conhecimento da alma.
Só a alma, a força interior, pode suportar a guerra sutil de atrito que é promovida por Mara. As ilusões aparecem e desaparecem, assim como falsas crenças se desintegram e aparentes verdades explodem. A mente tem necessidade de verdades que pertencem a um plano situado acima da ilusão, que crescem desde a origem do Ser e não dependem de condições ou bases pessoais. Por acaso não é um fato que certas verdades entram diretamente na consciência, e transmitem uma experiência interior tão clara que elas parecem ter sido conhecidas desde sempre? Por exemplo, existe a impressão de que a ideia de ser deixado sozinho, sem a companhia de pelo menos um outro ser humano, é fundamentalmente rejeitada no nível mais profundo do coração humano. Isso não deve ser superficialmente rotulado como medo da solidão, como um medo de si mesmo, ou como o resultado de uma consciência culpada. Na verdade, esta é a esmagadora compreensão de que o princípio da fraternidade é natural para a alma – por mais precária que seja a forma externa pela qual o ser humano vive este princípio.
Aqui chegamos a outro aspecto do amor. Ou talvez a fraternidade, na verdade, constitua a essência do amor.
A Fraternidade, em última instância, é a convicção inabalável de que cada vida e cada alma têm uma relação e uma identidade com todas as outras. A Fraternidade é o conhecimento do “ponto de acordo” entre todos os seres, e através do qual todos compartilham da Alma Universal. Se poderia dizer que quando o amor existe por si mesmo, sem a expectativa de recompensa ou reciprocidade, sem referência a qualidades particulares e portanto sem ser ameaçado por defeitos pessoais, ele é fraternidade pura e simples. Um tal amor é, evidentemente, uma sabedoria. Ele é intocado pelos pares de opostos. Ele não é ameaçado pela ação, pelo resultado da ação, ou por desejos. Ele mantém o prumo perfeito da equanimidade, que é a perfeição da habilidade na realização das ações. Ele é a intenção que dá forma à ação correta.
Como pode ser obtida a sabedoria do amor? Ela é obtida do modo como sempre se alcança a sabedoria. Ela é obtida por aquele que se torna digno dela.
O Carma, a lei da ação, regula este processo assim como regula todas as coisas. Um amor mais sábio não é obtido pela inação, nem é dado pelo capricho ou pelo acaso. Desrespeitar em nome do amor a integridade de outra pessoa, ainda que a outra pessoa não se oponha a isso e não veja a paralisação da sua própria vontade, é trair a fraternidade humana e negar a si mesmo o poder elevado do verdadeiro amor. Manchar ou tornar cega a compaixão, insistindo em que o amor deve ser homenageado, recompensado ou admirado, é selecionar para o futuro individual o sofrimento de uma paixão exigente. O amor, a fraternidade e a compaixão não podem ser ensinados, mas podem ser aprendidos.
Os paradoxos são úteis quando descrevemos o intangível, porque eles dissolvem as definições rígidas e sugerem uma realidade mais inclusiva. Assim, o amor, que parece ser intensamente pessoal, se torna com frequência maior e mais invencível quando é verdadeiramente impessoal. O “coração de criança”, a confiança dada tão livremente pelo ser humano não-sofisticado, é encontrado também naqueles em quem a sabedoria está estabelecida, cuja visão não tem véus, aqueles que conhecem o bem e o “mal” e permanecem imperturbados por qualquer coisa que ocorra.
Há uma impressão de que aqueles que estão “apaixonados” sabem pouco sobre o amor, simplesmente porque não podem ficar à parte e compreender que o amor é uma energia a ser dirigida conscientemente.
Assim como a vontade, o amor é uma força sem cor determinada, que assume o seu caráter conforme as motivações daquele que o vive. O amor não é uma desculpa, não é uma razão, não é uma justificação e tampouco é uma causa. Ele é uma energia que pode ser colocada em ação em qualquer plano, através de qualquer um dos princípios ou instrumentos da consciência humana. Dependendo do plano ou estado de consciência em que o Eu está agindo, esta energia pode ser de união ou destruição.
O amor, quando real, puro e profundo, tem sido para muitos uma antecipação da imortalidade, e, de certo modo, uma evidência de que há uma alma que não morre. Teosoficamente, isso também significa uma evidência da reencarnação. A doutrina do renascimento é a única explicação das afinidades – sejam casuais ou dominantes – que emergem com toda força nas vidas das pessoas e produzem amor ou ódio contrariando aparentemente o que elas querem e desejam. O amor e o ódio, na filosofia da reencarnação, são as grandes forças de atração que reúnem, uma e outra vez, amigos e inimigos do passado.
Porém, tanto o amor quanto o ódio, como opostos, devem desaparecer, porque “se um indivíduo trabalha, ainda que indiretamente, para si mesmo e de modo parcial, ele se torna nesta mesma medida um mago antievolutivo”.
H. P. Blavatsky distingue o real do parcial da seguinte maneira:
“O amor puro e divino não é apenas o fruto de um coração humano, mas tem sua origem na eternidade. O amor espiritual e sagrado é imortal, e o Carma faz com que, cedo ou tarde, todos os que se amaram com afeto espiritual nasçam no mesmo grupo familiar. Nós dizemos novamente que o amor além da morte, ainda que possa ser chamado de ilusão, tem uma potência mágica e divina que reage sobre os vivos…… Ele se manifesta nos seus sonhos, e frequentemente em vários acontecimentos – em proteção e fatos providenciais, porque o amor é um escudo forte, e não é limitado por espaço ou tempo.”
O laço cármico da afeição espiritual talvez vá criar famílias cujos membros são fraternalmente devotados a viver a vida mais elevada e a seguir “a doutrina do coração”. Os casais em que o amor de um pelo outro abre em certa medida o “terceiro olho” irão encontrar na vida cotidiana correspondências e analogias com a raça etérea dos Filhos nascidos da Mente, e começarão a sentir a força de uma profecia teosófica dada em “A Doutrina Secreta”. [2]
As crianças que crescerem na presença de um amor que é verdadeiramente “a luz do sol da vida” irão assimilar mais decididamente o carma da sua hereditariedade e do seu ambiente, e compreenderão mais cedo a função das afinidades na evolução da alma.
Uma família cujo ideal é a afeição espiritual jamais se desintegrará. Ela permanece como um núcleo de incontáveis ramificações e relacionamentos, cujo denominador comum é o impulso em direção à fraternidade: ela é um “movimento teosófico”, com potencialidades incalculáveis do ponto de vista do progresso da humanidade.
NOTAS:
[1] No seu Fragmento I, ou primeira parte, “A Voz do Silêncio”, de Helena Blavatsky, se refere ao “Grande Enganador” ou “Mara”. (CCA)
[2] “The Secret Doctrine”, H. P. Blavatsky, Theosophy Co., Los Angeles, volume II, p. 415. (CCA)
000
Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
000