Como a Alma se Aproxima
do Discipulado e da Sabedoria
Carlos Cardoso Aveline
“… A meta do filantropo
deve ser a iluminação espiritual
dos seus semelhantes, e seja quem for
que trabalhe com altruísmo para esse
objetivo coloca-se necessariamente em
contato com nossos chelas e conosco.”
(Um Mestre dos Himalaias)
O Caminho Estreito
As ideias governam o mundo, e a filósofa russa Helena Blavatsky (1831-1891) trouxe para nossa cultura algumas noções básicas e fundamentais, cuja influência duradoura vem mudando gradualmente o rumo e a substância da sociedade moderna.
Uma dessas ideias é a noção de que existe uma lei de fraternidade universal, sem fronteiras, que une todos os seres. As linhas de evolução de todos avançam unidas eternamente pela lei do Carma, que é a lei da Justiça Dinâmica e da Harmonização Constante. Nesse sentido, todos os seres são irmãos, embora possam ter idades muito diferentes.
Por outro lado, Blavatsky deu um enfoque mais profundo e científico a um fato que já havia sido popularizado pelos espíritas no Ocidente e por diversas religiões no Oriente: cada ser reencarna periodicamente em seu longo processo de evolução. À diferença dos espíritas, no entanto, Blavatsky ensinou que só a alma imortal ou eu superior reencarna, e não a personalidade (salvo contadas exceções, como quando há a morte de uma criança).
Uma das contribuições mais importantes de Blavatsky foi revelar e documentar a existência de uma sabedoria divina, eterna, ilimitada, presente em todas as culturas. Ela a chamou de Ocultismo, de teosofia, de doutrina secreta e de filosofia esotérica. Além disso, Blavatsky reavivou a memória da humanidade para o fato de que existem seres que estão em um estágio de evolução bastante superior ao da nossa humanidade. Eles se libertaram completamente da ignorância espiritual. Sobre esse ponto, vale a pena reproduzir um trecho do prefácio à edição brasileira de Cartas dos Mahatmas:
“Diversas religiões da humanidade preservam uma tradição segundo a qual uma coletividade de grandes sábios inspira e conduz, silenciosamente, a nossa humanidade no caminho que leva à paz e à sabedoria. O taoismo menciona estes sábios como Imortais, e o hinduísmo usa o termo Rishis. Para o budismo, eles são Arhats. Outros os chamam de Mahatmas, raja iogues, mestres de sabedoria, Adeptos ou, simplesmente, Iniciados. Segundo a filosofia esotérica, estes seres atingiram o Nirvana e libertaram-se inteiramente do estágio atual do reino humano, mas permanecem ligados à humanidade por laços de compaixão e solidariedade.” [Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett, Transcritas por A.T. Barker, Ed. Teosófica, vol. I, p. 21.]
São eles que mandam de quando em quando um grande instrutor filosófico ou religioso para acelerar a evolução humana, e tentam diminuir de várias maneiras nosso sofrimento e nossa ignorância.
Finalmente, há uma ideia trazida por Helena Blavatsky que é decisiva para todos aqueles que buscam aperfeiçoar-se e viver corretamente. Trata-se da noção de que existe um discipulado, ou seja, de que é possível passar por um aprendizado inspirado pelos sábios imortais.
De fato, a filosofia esotérica ensina que quando a alma de uma pessoa de boa vontade se volta para a fraternidade universal, ela chama a atenção desses instrutores. Passa, então, a ser suavemente inspirada – através da sua “voz da consciência” -, e é conduzida ao longo de um caminho íngreme, difícil, arriscado, de longa duração. Esse é o caminho da libertação espiritual, que cada alma deve percorrer ao longo de diversas encarnações.
Diferentes tradições filosóficas e religiosas fazem alusões a esse discipulado. Vejamos, por exemplo, a imagem de um caminho estreito e íngreme como símbolo do processo. O filósofo Maximinus escreveu sobre o “Y pitagórico”:
“A letra pitagórica se abre em dois caminhos, mostrando as duas sendas a que a vida do homem é levada. O caminho da direita conduz à virtude sagrada, e termina em paz, embora íngreme e difícil no início; o outro caminho é amplo e suave, mas, do seu ponto mais alto, o viajante é lançado para baixo, caindo sobre rochas. Quem aspira à Virtude com duros esforços adquire valor e renome superando as dores; mas morre desonrado aquele que busca a preguiça e a luxúria e foge do trabalho das grandes obras.” [The Pythagorean Sourcebook and Library, Phanes Press, Michigan, EUA, 1987, p. 158.]
A Escolha de Hércules
Mais tarde, em um texto de Xenofonte, o filósofo Sócrates cita as duas musas que visitaram o herói mitológico Hércules em sua juventude: a perversidade e a virtude. Vale a pena mencionar a história:
(…) Quando apenas dobrara a infância – nessa idade em que os jovens, já senhores de si, deixam ver se entrarão na vida pelo caminho da virtude ou do vício – Hércules retirou-se para a solidão e sentiu-se incerto quanto à via a escolher. Duas mulheres de avantajada estatura apresentaram-se-lhe ao olhar: uma decente e nobre, o corpo ornado de natural pureza, os olhos grávidos de pudor, o exterior modesto, as vestes brancas; a outra toda feita de brilho e moleza, a pele caiada a fim de aparentar cores mais brancas e mais vermelhas, procurando, na postura, parecer mais esbelta do que naturalmente o era (…); um adereço estudado para realçar seus encantos, mirando-se sem cessar, observando se a contemplavam e a todo momento voltando a cabeça para admirar a própria sombra. Aproximando-se de Hércules, enquanto a primeira conservava o mesmo olhar, a segunda, querendo antecedê-la, correu para o jovem herói e disse-lhe:
“Vejo-te, Hércules, incerto do caminho a seguir na vida. Se me quiseres tomar por amiga, conduzir-te-ei pela estrada mais agradável e fácil, provarás todos os prazeres e viverás livre de penas. Primeiro não te ocuparás de guerras nem negócios, mas não cessarás de examinar que iguarias e bebidas têm sabor melhor ao teu paladar, os objetos que possam deleitar-te os olhos e ouvidos, acariciar-te o olfato ou o tato, que afeição terá mais encantos para ti, como dormirás mais docemente, como poderás obter todos esses prazeres com o menor esforço. Se receias que venha a faltar-te o necessário para te dares tais doçuras, não temas que eu te obrigue a trabalhar e a penar de corpo e espírito para os adquirires; tirarás proveito do trabalho alheio e não te absterás do que quer que possa proporcionar-te ganho: porque dou aos que me seguem a faculdade de em toda parte obter vantagens.”
Hércules, após ouvir essas palavras, indagou-lhe:
“Mulher, qual é o teu nome?”
“Meus amigos” – respondeu ela – “chamaram-me Felicidade, e meus inimigos, para dar-me nome odioso, chamam-me Perversidade.”
Aí a outra mulher, adiantando-se, disse-lhe:
“Eu também venho a ti, Hércules; conheço os que te deram à luz e desde a tua infância observei teu caráter. Assim, espero que, se tomares o caminho que traz a mim, serás um dia autor ilustre de belos e gloriosos atos, e eu própria me verei mais honrada e considerada pelos homens virtuosos. Não te iludirei com promessas de prazeres: expor-te-ei o que existe com veracidade e tal qual o dispuseram os deuses. Do que há realmente honesto e belo, nada concedem os deuses aos homens sem sacrifício e esforço. Queres que os deuses te sejam propícios? Homenageia-os. Ambicionas a estima dos teus amigos? Beneficia-os. Desejas que uma nação te honre? Serve-a. Queres que a Grécia inteira admire teu valor? Procura ser-lhe útil. Desejas que a terra te prodigalize seus frutos? Cultiva-a. Preferes enriquecer com rebanhos? Apascenta-os. Aspiras a fazer-te grande pela guerra? Queres tornar livres teus amigos e triunfar sobre teus inimigos? Aprende a arte da guerra com aqueles que a conhecem, exercita-te em pôr em prática suas lições. Desejas adquirir força física? Habitua o corpo ao império da inteligência e tempera-o no trabalho e no suor.”
Aí a Perversidade, retomando:
“Compreendes, Hércules, quão penoso e longo é o caminho da felicidade que te propõe essa mulher? Enquanto eu, é por estrada fácil e breve que te conduzirei à ventura.”
Então a Virtude:
“Miserável!” – disse – “Que bens possuis? Que prazeres podes conhecer, tu que nada queres fazer para obtê-los? Sequer deixas nascer o desejo: farta de tudo antes de ter desejado coisa alguma, comes antes da fome, bebes antes da sede. Para comer com prazer, vives à caça de cozinheiros. Para beber com prazer, procuras beber vinhos caríssimos e no verão corres a toda parte em busca de neve. Para dormir agradavelmente, procuras cobertas macias e leitos flexíveis. (…) Meus amigos saboreiam com prazer e sem artifícios alimentos e bebidas, porque esperam o desejo para comer e beber. O sono lhes é mais agradável que aos ociosos; interrompem-no sem pesar e não lhe sacrificam seus negócios. Quando jovens, sentem-se felizes com os elogios dos anciãos. Quando velhos, recebem satisfeitos os respeitos da juventude. Recordam com prazer as ações passadas e realizam com prazer o que lhes resta fazer. Por causa minha, são amados pelos deuses, caros aos amigos, honrados pela pátria. Ao soar a hora fatal, não dormem em esquecimento sem honra, mas sua memória resplandece celebrada ao longo das épocas. Aí está, Hércules, como, trabalhando, podes alcançar a suprema felicidade.” [Veja a obra de Xenofonte intitulada “Ditos e Feitos Memoráveis de Sócrates”, no volume “Sócrates”, Coleção Os Pensadores, Ed. Nova Cultural, Círculo do Livro S.A., SP, 1996, 303 pp. O trecho citado está nas pp. 90-92.]
Seja qual for o estágio de desenvolvimento em que está uma alma humana, a cada momento abrem-se diante dela pelo menos dois caminhos, um exteriormente fácil, feito do atendimento de desejos inferiores, e outro exteriormente difícil, feito de desapego e sabedoria. A felicidade produzida pela filosofia é interior, e duradoura. Já a felicidade da ignorância é apenas uma satisfação externa que provoca sofrimento mais adiante.
Um Trabalho Que Atravessa os Séculos
Adotando como sua essa imagem dos dois caminhos presente na Grécia antiga, o mestre Jesus ensina, no Novo Testamento:
“Entrem pela porta estreita, porque largo é o caminho que leva à perdição. E muitos são os que entram por ele. Estreita porém é a porta, e apertado o caminho que leva à vida.” (Mt. 7:13-14)
Em um nível mais complexo do ensinamento, esse mesmo “Y” pitagórico está presente no aprendizado da filosofia esotérica. Ao escrever sobre as condições do chelado – palavra sânscrita para discipulado – um Mahatma afirma, em uma carta de agosto de 1882:
“Um chela em provação tem permissão para pensar e fazer o que quiser. Ele é advertido e informado previamente: ‘Você será tentado e enganado pelas aparências; dois caminhos se abrirão diante de você, os dois levando à meta que você está tentando alcançar; um, fácil, e este o levará mais rapidamente ao cumprimento das ordens que você pode receber; o outro, mais árduo, mais longo; um caminho cheio de pedras e espinhos que o farão pisar em falso mais de uma vez; e no final do qual você pode, talvez, chegar a um fracasso, depois de tudo, e ser incapaz de executar as ordens dadas para um pequeno trabalho particular – mas, enquanto este caminho fará com que as dificuldades enfrentadas por você devido a ele sejam todas contabilizadas a seu favor a longo prazo, o outro, o caminho fácil, só pode oferecer a você uma gratificação momentânea, uma realização fácil da tarefa’.” [“Cartas dos Mahatmas para A.P. Sinnett”, Ed. Teosófica, Brasília, edição em dois volumes. Ver Carta 74, volume I, p. 343.]
E Helena Blavatsky escreveu:
“Há um caminho íngreme e cheio de espinhos, rodeado de perigos de todo tipo – mas ainda assim um caminho; é ele que leva até o Coração do Universo. Posso dizer a vocês como encontrar Aqueles que lhes mostrarão o único portal secreto, que conduz ao interior […]. Para aqueles que vencem, há uma recompensa de valor indescritível: o poder de abençoar e salvar a humanidade. Para aqueles que são derrotados, há outras vidas em que o êxito poderá ser alcançado.” [“Helena Blavatsky”, de Sylvia Cranston, Ed. Teosófica, Brasília, 1997, 678 pp., ver p. 590.]
É tentando que se aprende. A única derrota é não tentar.
Um Reservatório de Insights
O pensador inglês Geoffrey Farthing escreve, em uma carta-circular de dezembro de 2002:
“A mensagem dos Mestres foi aquela que eles deram diretamente a nós em seus próprios escritos, nas Cartas dos Mahatmas, ou nos escritos em que eles usaram H. P. Blavatsky como auxiliar. Esses escritos devem ser distinguidos dos que vieram depois como comentários, opiniões pessoais, ou até paródias dos originais, mas que foram, no entanto, distribuídos como Teosofia. Os Mestres não apenas repetiram o que já era conhecido nas obras clássicas religiosas e filosóficas, mas acrescentaram muito material que até aquele momento havia sido mantido secreto. (…) Nós não temos o Instrutor, mas temos o Ensinamento intacto, e isso é um acontecimento da história mundial.” [“The Vision”, texto de Geoffrey Farthing aos membros da “Association of Master/HPB Theosophists”, de 5 de dezembro de 2002 e anexado a um memorando de 11 de março de 2003. Ver página 6.]
De fato, os alicerces da literatura clássica de filosofia esotérica foram plantados no período de 1875-1891, pelos Adeptos com ajuda de H. P. Blavatsky e outros discípulos avançados. Não há dúvida de que o convívio com essa literatura constitui uma oportunidade espiritual para o estudante. Mas não é fácil, para a personalidade terrestre, compreender a importância desse fato.
Podemos esquecer o caráter potencialmente decisivo dessa oportunidade, até porque hoje os livros da literatura teosófica clássica podem ser facilmente adquiridos. Eles fazem parte do nosso cotidiano – e tudo que é cotidiano parece corriqueiro. Mas talvez seja um absoluto privilégio ter, ao nosso alcance, instruções vindas diretamente de seres que atingiram a meta da evolução humana. Esse privilégio e essa oportunidade são resultados do trabalho e do sacrifício de muita gente sábia que viveu e sofreu antes de nós.
Para um estudante atento, as Cartas recebidas dos Mestres estão longe de ser a única fonte de inspiração. As fontes são incontáveis e brilham em cada aspecto da vida, dentro e fora de nós. As Cartas são apenas um reservatório ilimitado de insights – percepções intuitivas – sobre o aprendizado espiritual em geral e o discipulado em particular. Elas podem despertar em nós a capacidade de enxergar a luz – a habilidade de ter olhos para ver a sabedoria em todas as partes.
Qual é, então, a melhor maneira de estudar as Cartas? Ao ler esses documentos, podemos deixar de lado sem qualquer constrangimento as frases ou parágrafos que não nos dizem nada, para concentrar-nos nos fragmentos que são significativos para nós. Como todo bom texto de filosofia esotérica, as Cartas têm várias maneiras de falar a quem tem olhos para ler, e algumas dessas maneiras são intuitivas.
Por Que Não Há Cartas Recentes
De tempos em tempos, alguém pergunta: “por que os mestres já não escrevem mais cartas?”
A resposta é simples. O período de contato externo, verbal, ostensivo e por escrito entre os Adeptos e a humanidade ocorreu entre 1875 e 1891 e teve uma última manifestação em 1900. Esse período foi uma exceção às regras dos Adeptos, e uma exceção limitada no tempo e no espaço, autorizada e regulada pelo próprio “Chohan”, o mestre e chefe dos Adeptos que inspiraram a fundação do movimento teosófico. O período de contatos ostensivos terminou claramente em 1900. Eles só não se interromperam no terreno da fantasia irresponsável: hoje há gente que conversa com comandantes de frotas interestelares, outros preferem ver a Virgem Maria, ou ouvir Jesus, mas alguns têm orgulho de conversar com “Adeptos” e com “Mestres Ascensos”. Aliás, em geral essas mensagens chamam atenção pelo seu conteúdo fraco e pouco original. Elas fazem parte do folclore e da mitologia da “nova era”.
A verdade é que mesmo se, porventura, o contato ostensivo com os verdadeiros Adeptos fosse possível hoje, ele não seria necessário, e não faria sentido que discípulos leigos e aspirantes ao discipulado recebessem comunicações externas e verbais dos Mestres. Isso seria algo como fazer chover no molhado.
Sobre esse ponto, vale a pena lembrar um episódio misterioso, mas ilustrativo, da história do movimento esotérico. Henry Olcott escreveu que, em determinada ocasião, vários Mahatmas, estando reunidos em certo local, fizeram com que desfilassem na luz astral diante deles as imagens refletidas (como em um espelho) de todos os membros da Sociedade Teosófica na Índia. [“Applied Theosophy and Other Essays”, Henry Steel Olcott, Theosophical Publishing House, 1975, 280 pp., ver pp. 202-203.]
Não interessa, aqui, discutir os detalhes do episódio. Basta destacar o fato de que, naturalmente, se os Mahatmas decidissem fazer essa mesma revisão coletiva de auras com os estudantes de filosofia esotérica do século 21 – algo que, em tese, é perfeitamente possível – e se eles desejassem dar-nos indicações sobre como podemos seguir adiante em nossos esforços espirituais, eles não teriam que gastar energia mandando cartas, fisicamente, a nenhum de nós. As cartas e as indicações sobre o caminho espiritual já estão disponíveis. Como se sabe, eles têm como norma não desperdiçar energias.
Do nosso ponto de vista mais prático e pragmático, portanto, as cartas dos mestres, hoje publicadas, não foram dirigidas apenas a algumas pessoas do século 19. Pelo contrário, as recomendações que as cartas contêm são válidas para todos os que buscam e buscarão viver e compreender a filosofia esotérica, ao longo dos séculos 21, 22, 23 e assim por diante. Ali estão indicações preciosas sobre o despertar da inteligência espiritual, buddhi-manas, um processo que prepara o surgimento das civilizações do futuro.
Os Vários Tipos de Discípulos
Do ponto de vista das condições práticas do século 21, pode-se dizer que o significado do termo discipulado é, simplesmente, processo de aprendizagem.
Discípulo, assim, é aquele que aprende – o aprendiz. E disciplina é o método de aprendizagem. O modo externo de desenvolvimento do discipulado e sua intensidade devem ser administrados com autonomia pelo próprio aprendiz, nos termos do método Paulo Freire. A pedagogia de Freire coincide, nesse ponto, com o método usado pelos Mahatmas.
[Entre as numerosas cartas em que os Mestres afirmam o princípio da autonomia do aprendiz, veja a breve carta 95, em “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett” (Ed. Teosófica, volume dois), as Cartas 42 e 43, primeira série, e a carta 72, segunda série, em “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, editadas por C. Jinarajadasa. Em relação a Paulo Freire, veja, por exemplo, “Pedagogia da Autonomia, Saberes Necessários à Prática Educativa”, Paulo Freire, Ed. Paz e Terra, SP.]
Um verdadeiro instrutor espiritual jamais suprime a independência do estudante em relação ao rumo de sua vida e seu aprendizado.
O estudo das Cartas dos Mestres permite perceber vários tipos de discípulos ou aprendizes da sabedoria eterna.
Vejamos, em linhas gerais, quais são eles.
1) O discípulo regular
Esse aprendiz é treinado pessoalmente e recebe instruções diretas, verbais, de um Adepto, com maior ou menor frequência, de acordo com o seu mérito e suas características. Esse foi o caso de pioneiros do movimento teosófico como Helena Blavatsky, Damodar Mavalankar, Henry Olcott, Subba Row, Mohini Chatterjee e Laura Holloway. O discipulado regular tem um estágio probatório, após o qual o aprendiz passa a ser um discípulo aceito, isto é, um discípulo regular propriamente dito.
É interessante observar que os Mestres nunca tiram de um discípulo sua responsabilidade diante da vida. Mesmo que quisessem, eles não poderiam interferir de modo grosseiro com o carma dos seus discípulos, e essa é uma regra inflexível. Consequentemente, mesmo um discípulo regular e aceito, uma vez que esteja vivendo sujeito ao carma do mundo e longe dos ashrams dos Mestres, pode passar longos períodos de tempo iludido por falsas concepções, e por isso sem condições de receber impressões dos Mestres. Tudo indica que isso ocorreu com Subba Row, um discípulo avançado que cometeu erros importantes, afastou-se de HPB, rejeitou o trabalho que ela fazia sob direção direta de vários Mahatmas, e acabou cometendo erros pessoais graves que causaram sua doença e morte prematura. No entanto, sua derrota foi tática. Conta-se que, horas antes de morrer, suas últimas palavras foram: “O Mestre veio buscar-me. Não falo com mais ninguém”. Os erros de Subba Row foram parte do aprendizado da sua alma, e ele caiu de pé.
Outro exemplo dessa lei do discipulado, pela qual ilusões podem impedir ou turvar a inspiração direta dos Mestres mesmo no caso de discípulos regulares, aceitos e inclusive avançados, ocorreu com Henry Olcott. Falando de Olcott, um Mestre disse, em conversa com H.P. Blavatsky:
“Tais são as razões por que (…..) ele (……) nunca me percebe nem me ouve, ainda que seu pensamento pairasse mais de uma vez sobre a paisagem e a casa que você tornou familiar para ele um dia…”
Na mesma conversa, o Mahatma disse:
“Porque a Sociedade [Teosófica] libertou-se do nosso controle e influência e a deixamos ir – não fazemos escravos à força. Ele disse que a salvou? Ele salvou seu corpo, mas permitiu, por puro medo, que sua alma escapasse, e ela é agora um cadáver sem alma, uma máquina …” [“Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada, Carta 47, primeira série, pp. 107-108.]
Mais tarde, HPB deu outro impulso ao movimento teosófico. Este último esforço foi feito a partir de Londres, onde viveu os anos finais da sua vida.
2) O discípulo leigo nas condições do final do século 19
Esse tipo de aprendiz podia mandar cartas aos Mahatmas através de certos discípulos regulares, e recebia instruções e recados dos Mestres. Um exemplo concreto desse tipo de discipulado leigo foi a cooperação dos ingleses Alfred Sinnett e Allan O. Hume com os Mestres.
3) O discípulo leigo consciente nas condições pós-1900
Esse aprendiz é alguém que:
a) sabe ou percebe que os Adeptos existem;
b) estuda os seus ensinamentos;
c) tenta compreender e colaborar com o trabalho deles pela humanidade; e
d) dentro das suas possibilidades, realiza as tarefas do discipulado. Na medida da sua perseverança e da seriedade dos seus esforços, o estudante de filosofia esotérica que colocar o seu coração a serviço do ensinamento será um bom discípulo leigo, isto é, um bom aspirante ao discipulado regular.
Um Mestre escreveu:
“Como Subba Row lhe explicou, a meta do filantropo deve ser a iluminação espiritual dos seus semelhantes, e seja quem for que trabalhe com altruísmo para esse objetivo coloca-se necessariamente em comunicação magnética com nossos chelas e conosco.” [“Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada, Carta 31, primeira série, p. 87.]
Portanto, não se pode dizer, de modo algum, que não haja contato entre os Mahatmas e os discípulos leigos pós-1900. Porém, esse contato não é verbal nem visual. Sua existência dependerá da ligação entre a alma imortal e a personalidade do próprio discípulo, porque o Mestre nunca se manifesta exceto através do sexto princípio, e é o acesso do aprendiz ao seu próprio sexto princípio – buddhi, a alma espiritual – que o colocará dentro do campo de observação e de ação dos Mestres de Sabedoria. É essencial compreender que se trata de um campo magnético, conforme fica claro na citação acima: a área de observação e ação dos Mahatmas é um campo de afinidades que se dá por padrões nobres e puros de vibração mental e emocional.
Em outra passagem das cartas, um Mestre retoma a questão do contato vivo, porém não-verbal e não visual, entre Mestres e aprendizes leigos. Ele escreveu a Alfred Sinnett:
“A Natureza uniu todas as partes do seu Império por meio de fios sutis de simpatia magnética, e há uma relação mútua até mesmo entre uma estrela e o homem (…). Assim como a luz no vale sombrio é vista pelo montanhista do alto dos seus picos, cada pensamento luminoso em sua mente, meu Irmão, brilhará atraindo a atenção deste seu distante amigo (…). Se descobrimos deste modo os nossos Aliados naturais no Mundo (….) e nossa lei manda aproximar-nos de todo aquele que tenha o mais leve lampejo da verdadeira luz do ‘Tathagata’ – então tanto mais fácil será para você atrair-nos!” [“Cartas dos Mahatmas”, obra citada, Carta 47, volume um, final da p. 217 e metade superior da p. 218.]
Há pelo menos dois pontos fundamentais no trecho acima:
1) A lei dos Mestres manda que eles se aproximem de todo aquele que tenha o mais leve lampejo de luz búdica, e isso pode incluir o mais humilde estudante de filosofia esotérica, e qualquer pessoa que tenha uma mente aberta, um coração puro e uma boa vontade diante da vida;
2) Cada luz no “vale sombrio” é vista pelo observador situado no pico das montanhas – isto é, cada indivíduo que tenha lampejos de inteligência verdadeiramente espiritual pode estar dentro do campo de observação dos Raja-Iogues e Adeptos.
Um aspecto importante do processo dinâmico de inspiração no discipulado leigo pós-1900 está definido por um Adepto na famosa Carta de 1900:
“Em períodos favoráveis, liberamos influências elevadoras que impressionam várias pessoas de diferentes maneiras. É o aspecto coletivo de muitos destes pensamentos que pode dar o rumo correto à ação.” [“Cartas dos Mestres de Sabedoria”, obra citada, Carta 46 da primeira série, p. 106.]
O aspecto coletivo da inspiração torna necessário ter presente a bem conhecida regra – mencionada por um Mahatma – sobre o sentimento de boa vontade entre estudantes de filosofia:
“Um grupo de estudantes das Doutrinas Esot. que queira obter qualquer proveito espiritual deve estar em perfeita harmonia e unidade de pensamento. Cada um, individual e coletivamente, deve ser, no mínimo, totalmente altruísta, gentil e pleno de boa vontade em relação a cada um dos outros – para não falar da humanidade; não deve haver espírito de facção em meio ao grupo, nem maledicência, má-vontade, inveja ou ciúmes, desprezo ou cólera. O que fere um deve ferir o outro – aquilo que alegra ‘A’ deve encher ‘B’ de prazer.”
[Veja o item III, Carta 3, primeira série, em “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, pp. 24-25. Neste trecho a tradução está revisada levando em conta o original em inglês.]
Do ponto de vista prático, no entanto, não há qualquer necessidade de atribuir à ajuda de algum Adepto as inspirações e expansões que sentimos em nossa consciência espiritual. Bem pelo contrário. Deve-se evitar trazer o processo de inspiração para a linguagem do mundo tridimensional, porque essa vontade de rotular produz vaidade, e trava e impossibilita o processo no que ele tem de melhor e mais autêntico. Personalizar e dar nomes é trazer para baixo a vibração.
Basta saber que, de certo modo, as pessoas de boa vontade que possuem um razoável discernimento e uma certa amplitude de horizontes na busca da fraternidade universal estão dentro do campo de observação dos Mahatmas e de seus discípulos avançados. O desafio prático do estudante e do aprendiz está bem colocado nessas palavras de Kahlil Gibran, em uma obra que, significativamente, é intitulada “A Voz do Mestre”:
“Quando a Razão te fala, presta atenção ao que ela diz, e te salvarás. Faze bom uso de seus preceitos, e serás como homem armado. Pois Deus não te poderia ter dado nem melhor guia nem melhor arma que a Razão. Quando a Razão fala ao mais profundo do teu íntimo, estás à prova do Desejo. Pois a Razão é um ministro prudente, um guia leal e um sábio conselheiro. A Razão é a luz na treva, assim como o Ódio é a escuridão em meio à luz. Sê sábio – deixa que a Razão, e não o Impulso, seja teu guia.” [“A Voz do Mestre”, Kahlil Gibran, Círculo do Livro S. A., SP, 1975, 123 pp., ver parte dois, capítulo seis, p. 63. A palavra “Deus”, aqui, pode ser traduzida por “Lei Universal”.]
4) O discípulo leigo inconsciente
Esse tipo de aprendiz nada sabe sobre os Adeptos, ou não crê na existência deles mas, mesmo assim, recebe sua ajuda e inspiração. Para compreender essa forma de discipulado, é necessário conhecer certos aspectos técnicos interessantes. No caso de todos os tipos de discípulos leigos, os Adeptos limitam o seu interesse pelos aspectos internos e superiores da alma humana, e costumam ignorar os assuntos da casca externa e da personalidade. Mas, como vimos, eles são capazes de observar qualquer luz búdica que se acende na mente de algum ser humano.
Assim, o verdadeiro discipulado independe do fato de a pessoa saber ou não, na sua consciência mental e cerebral, da existência de Mahatmas. De fato, há numerosos casos de discípulos leigos ativamente inspirados e até protegidos pelos Mestres que nem sequer sabem da existência deles ou da existência de um caminho espiritual nos termos da filosofia esotérica. Essas pessoas simplesmente trabalham com altruísmo pelo bem da humanidade. Isso as coloca de imediato dentro do campo magnético de observação e de inspiração telepática dos Mahatmas.
O altruísmo, no entanto, deve surgir espontaneamente e nunca pode ser resultado de alguma tentativa do aprendiz no sentido de manipular seus próprios sentimentos. Há estudantes que convencem a si mesmos de que têm sentimentos generosos e até se orgulham disso. Outros pretendem “regulamentar a generosidade” por meio de regras fixas de comportamento.
Na verdade, nossa boa educação é frequentemente uma camada de verniz social que destrói a sinceridade e transforma a vida em um jogo de cartas marcadas. O discípulo deve ir além dessas encenações, mesmo que, por causa disso, nem sempre seja bem compreendido.
[O texto continua: veja a conclusão em
“O Caminho do Aprendizado – Parte II”.]
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
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