O Que é Impossível Para
Um, É Possível Para Outros
Um, É Possível Para Outros
Carlos Cardoso Aveline
Há vários aspectos a examinar na complexa relação entre teoria e prática, ao longo do caminho do autoconhecimento.
Devemos investigar, por exemplo, o que há de ilusório – do ponto de vista da filosofia esotérica – neste raciocínio repetido automaticamente por milhares e milhares de pessoas:
“Pode ser muito bonita a teoria segundo a qual devemos viver com calma e com sabedoria, evitando o estresse. Mas, na prática, não é assim que a vida funciona. Temos mesmo que fazer 45 coisas ao mesmo tempo e não há como evitar a ansiedade ou a agitação.”
O que há de equivocado neste enfoque da questão da “vida simples”? As ilusões do argumento acima podem ser organizadas em três pontos principais.
Em primeiro lugar, a ideia desvincula a teoria da prática.
A desvinculação entre teoria e prática, descrevendo-se a teoria como “algo bonito mas sem utilidade prática”, leva, mais cedo ou mais tarde, à hipocrisia. Só por isso o enfoque já não poderia ser aceito, porque nesse caso a chamada “teoria” não passa de uma mentira elaborada para iludir a si mesmo ou os outros.
Em segundo lugar, a ideia expressa o abandono implícito até mesmo da intenção de tentar ser coerente. A pessoa se autojustifica de antemão e desiste completamente da ideia de viver a sabedoria em sua vida prática. Neste caso, ela deve ser pelo menos honesta o suficiente para abandonar também a teoria, evitando resvalar para o abismo ético da mentira sobre assuntos espirituais.
Em terceiro lugar, a afirmação de que “na prática, a teoria que propõe uma vida calma deve ser vista como algo meramente decorativo” simplesmente não corresponde à mais elementar realidade dos fatos. Essa visão superficial ignora a realidade de que a prática da calma e da sabedoria é exercida desde que existe a humanidade – e também nos dias atuais – por milhões de indivíduos que estavam ou estão comprometidos, formal ou informalmente, consciente ou inconscientemente, com o centro de paz em suas próprias consciências.
A paz e a calma são sobretudo interiores e não negam a movimentação externa própria de tudo o que vive.
É bem conhecido e documentado o testemunho de milhares de sábios e aprendizes da sabedoria universal, nas mais diferentes religiões, desde pelo menos 3.000 anos atrás.
Estes testemunhos de vida mostram que é perfeitamente possível viver uma vida baseada na simplicidade, e não na complicação. Milhões de cidadãos trilham hoje em todo o mundo este caminho prático, dentro das suas possibilidades e dos seus limites.
Devemos levar em conta, ao mesmo tempo, que não existe uma divisão simples e definitiva entre “aqueles que vivem o ensinamento” e “aqueles que não vivem o ensinamento”.
A distinção a ser feita é mais complexa, e mais dinâmica. Há uma divisão, isso sim, entre aqueles que “se esforçam para viver cada vez mais o ensinamento, gradualmente e dentro da sua realidade”, e aqueles que “criam pretextos para justificar o fato de que não se esforçam para viver cada vez mais o ensinamento, nem mesmo dentro das suas possibilidades”.
Não importa, pois, se a pessoa vive muito ou pouco o ensinamento.
Importa – e isso é significativo para ela mesma, não tanto para os outros – se a capacidade da pessoa de vivenciar o ensinamento é crescente ou decrescente.
Seria perfeitamente correto, portanto, dizer:
“A teoria segundo a qual devo viver com calma e com sabedoria é bonita e inspiradora: porém, na prática, eu ainda não consigo aplicá-la tanto quanto eu gostaria”.
E todos nós devemos fazer esta mesma honesta admissão, sem dúvida, ao colocarmos diante de nós o ideal da perfeição humana ensinado pela filosofia e pela teosofia.
Conforme Helena Blavatsky esclarece em seu livro “A Chave da Teosofia”, é verdade que muitos teosofistas têm dificuldades para vivenciar o ensinamento, mas essa é uma limitação deles, e não do ensinamento. Os alunos devem amadurecer o suficiente para compreender a importância do ensinamento. A filosofia esotérica não pode ser definida como falsa, ou como meramente “especulativa”, apenas porque tais ou quais pessoas ainda não estão à altura dela.
A verdade é que, em todos os tempos, muita gente vivenciou a sabedoria secreta e universal. E cada um de nós pode vivê-la dentro das suas possibilidades.
Em último caso, poderemos admitir honestamente que, segundo pensamos, nós, individualmente, em nossa etapa atual, não podemos viver tal ou qual aspecto da sabedoria. Para isso, porém, não há necessidade de definir a sabedoria como algo falso e destituído de razão de existir, ao afirmar que “na prática ela não pode ser vivenciada”.
Se hoje não conseguimos vivenciar plenamente a sabedoria, isso é humano. Admitir o fato é honesto. Mas a limitação é apenas individual e não coletiva. No futuro, venceremos esse obstáculo. E mesmo hoje é possível ver outras pessoas que consideram fácil e natural viver a calma e a paz da sabedoria, e aprender com elas.
Seja qual for o nosso estágio de evolução, se examinarmos a estranha “sensação de impossibilidade” que temos diante da ideia de alcançar e praticar certos níveis de ensinamento sagrado que já distinguimos e compreendemos, mas que ainda parecem estar acima do nosso alcance, talvez vejamos que tal sensação será facilmente removida, no dia em que aprofundarmos melhor o contato direto com o potencial ilimitado que há em nosso interior.
Aprender é superar limites. Os estudantes de teosofia ou filosofia não devem esquecer disso. A médio e longo prazo, os “limites” e “impossibilidades” do aprendizado terminam por revelar-se apenas criações ilusórias da ignorância acumulada, algo que estamos aprendendo a remover gradualmente do nosso ser interior.
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Veja ainda o texto “A Diferença Entre a Teoria e o Discurso”, do mesmo autor, que está disponível em nossos websites associados.
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