A Existência Humana Como Uma Obra de Arte
Carlos Cardoso Aveline
“Aos quinze anos dediquei o meu coração à
aprendizagem; aos trinta assumi o meu lugar;
aos quarenta fiquei livre de dúvidas; aos cinquenta
compreendi o Decreto do Céu; aos sessenta o meu
ouvido estava afinado; aos setenta eu segui o
desejo do meu coração sem ultrapassar a linha.” [1]
Não pergunte qual é a idade mais importante da sua vida. A idade mais importante é a que você tem agora. O momento mais decisivo é este preciso instante. O dia mais pleno é o dia de hoje – e isso tem sido assim desde sempre.
O instante presente contém em si os resultados de todos os aspectos do passado e as sementes de todos os momentos futuros. O passado e o futuro são infinitos, mas são influenciados pelo que ocorre agora.
Embora os fatos do passado não sejam alterados, o modo como eles são percebidos é sempre diferente, à medida que vivemos novas situações. Um estado de espírito otimista mostrará um passado feliz. Um sentimento de raiva atrairá lembranças de rancores e conflitos. A filosofia teosófica mostra que tudo que passou traz lições, e que frequentemente os nossos sofrimentos são mais produtivos do que os momentos agradáveis. Além disso, o mesmo e velho passado nos dá lições diferentes a cada instante. À medida que enfrentamos desafios inéditos, enxergamos significados novos em acontecimentos distantes no tempo.
Assim, o passado não é infinito apenas no sentido cronológico. Há um número ilimitado de pontos de vista a partir do qual podemos olhar para ele, e o mesmo ocorre em relação ao futuro. Para a alma imortal, uma vida é uma obra de arte, e ela pode ser bem realizada desde o início até o seu final. Do nascimento à velhice, uma vida passa por fases muito diferentes, mas, internamente, ela forma uma unidade. Cada faixa etária tem uma relação viva com todas as outras. Se tenho oitenta anos, posso me reconhecer como continuação do garoto de oito anos que fui. Se sou um adolescente de 17, possuo em mim o material que florescerá no futuro cidadão experiente de setenta anos. Assim, seja qual for minha idade, ela contém as heranças das idades anteriores e também as sementes que germinarão, ou não, no futuro. O livre-arbítrio me permite eliminar pela força da compreensão as sementes negativas herdadas do passado, enquanto faço germinar pelo poder da sabedoria as sementes positivas.
Na verdade, portanto, todas as minhas idades estão presentes em cada momento da minha vida. Posso dialogar com os meus “eus” de idades prévias, e também com os “eus” de idades futuras. A vida é um mistério fascinante. Nossa existência pessoal é como uma pequena casca de noz que navega durante oitenta ou cem anos pela onda de vida física de um planeta situado na periferia de uma galáxia menor. Essa galáxia, por sua vez, navega em um mar eterno e infinito, para o qual um período de alguns bilhões de anos é pouca coisa.
Embora a vida da casca de noz pessoal seja passageira, a alma imortal reencarna sucessivamente, recebendo como instrumentos de navegação novas cascas de nozes, até alcançar a perfeição humana. Naturalmente, não lembramos das vidas anteriores. A lei universal estabelece que – salvo exceções – nenhuma casca física deve recordar, com sua mente cerebral ou seus cinco sentidos, das experiências da casca anterior. Afinal, não é o corpo físico nem o eu inferior que reencarnam, mas apenas a alma imortal. Só ela tem direito a navegar no oceano do tempo eterno e do espaço infinito. A alternativa que nos resta é elevar nossa consciência até ela. Então compreenderemos a vida de fato.
A criação do mundo repete-se, em pequena escala, cada vez que uma criança é concebida. Assim como a vida do planeta começou no mar, a vida de cada um de nós começa no líquido amniótico do corpo da mãe. O feto refaz em miniatura as etapas da vida na Terra. A criança nasce como um animal indefeso, depois rasteja como um réptil, e mais tarde faz brincadeiras que recordam inconscientemente etapas anteriores da história humana. A alma imortal se aproxima aos poucos do seu corpo novo. A criança traz ao mundo uma pureza que é resultado – segundo a filosofia esotérica – do longo banho abençoado que foi a passagem da alma pelo Devachan, o “local divino”, o período de descanso espiritual entre uma encarnação e outra. O Devachan dura normalmente de mil a quatro mil anos. [2]
Segundo a teosofia original, uma vida humana se divide em períodos setenários. A ciência informa que, a cada sete anos, se renovam completamente as células do nosso corpo. O carma pessoal também se reorganiza nesse prazo. Assim, as diferentes fases da vida têm suas próprias lições. Embora a vida de cada um seja um processo único, há algumas tendências gerais, válidas para todos, que facilitam a nossa compreensão da vida como uma obra de arte.
1) Nos primeiros sete anos, o indivíduo aprende a lidar com o mundo físico. Ele entra para a escola e passa pela alfabetização. Até sete anos, a alma mortal se consolida como ponte e como síntese entre as circunstâncias físicas e emocionais do nascimento, de um lado, e a intenção, o carma e as potencialidades internas trazidas das vidas anteriores. A casca psicológica do eu, feita de hábitos e tendências, começa a se consolidar mas ainda permanece aberta a muitas influências. Daí a necessidade de proteção, de estabilidade, e de estímulos positivos que despertem nela a autoconfiança e a percepção do seu próprio potencial interno para o bem.
Nesta etapa também é muito frequente que tenhamos percepções fundamentais sobre a meta da nossa vida. Então surge a primeira versão do propósito de vida, cuja base é a experiência acumulada de encarnações anteriores. O escritor Érico Veríssimo confessou, na idade madura, que o rumo da sua vida foi determinado por decisões internas tomadas quando tinha quatro ou cinco anos de idade.
Em qualquer etapa da vida, podemos recuperar e reforçar a essência positiva da intenção profunda que emergiu na infância. A criança que fomos estará presente em nosso mundo psicológico enquanto vivermos. É sempre recomendável verificar se somos leais ao propósito glorioso que ela definiu para nossa existência.
2) Entre os sete e os catorze anos cresce a nossa identificação com o mundo externo e somos envolvidos por uma malha fina de exigências sociais. O período culmina com a entrada na adolescência e o começo de uma grande transição física e emocional em direção à vida adulta. A alma imortal já não fala com tanta facilidade como antes com a casca externa, que agora está preocupada em navegar em um mar agitado de pressões, deveres e emoções.
É um dever dos adultos dar estabilidade emocional e estímulos positivos a cada criança. Porém, algumas almas nascem em situações tempestuosas. A poeta brasileira Cecília Meireles, por exemplo, perdeu os dois pais antes dos quatro anos de idade. Para evitar mais perdas, ela fugiu do que é transitório e dedicou sua vida a assuntos imortais, usando a literatura como refúgio e como instrumento.
3) Entre os 14 e os 21 anos alcançamos a maioridade. Ocorrem agora as primeiras paixões, o primeiro emprego – talvez o primeiro desemprego – e, muitas vezes, o casamento e filhos. Também há almas que embarcam em sonhos mais amplos e aventuras impessoais como um ideal revolucionário, a decisão de viajar pelo mundo, uma busca mística ou a atividade literária. É nessa etapa que a pessoa faz suas revoluções pessoais e se projeta para o futuro. É claro que nem sempre há uma grande dose de acerto em tais tentativas. Mas, havendo boa intenção, os equívocos não serão graves. Mais tarde virá a sabedoria da experiência.
4) Entre 21 e 28 anos de idade surge um poderoso impulso profissional e, conforme a alma e as circunstâncias, espiritual. Aos 28 anos, o indivíduo é plenamente adulto. A pessoa se estabelece na vida e contrai compromissos que podem durar pelo resto da vida.
5) Dos 28 aos 35 anos, surge a fase madura da vida. Astrologicamente, há um evento decisivo entre 28 e 30 anos. O planeta Saturno completa uma volta no mapa astral e passa novamente pelo local do céu em que ele estava no momento em que a pessoa nasceu. Saturno é o mestre do tempo, do carma, dos limites e das estruturas. Sua lenta passagem pelas casas do nosso mapa astrológico define os grandes temas das diversas fases da nossa existência. A primeira volta de Saturno provoca uma avaliação geral das ações feitas até o momento e, muitas vezes, há mudanças radicais na vida. É como se a pessoa encontrasse seu rumo e seu destino. O que houver de falso ou ilusório cai como um castelo de cartas, porque Saturno exige situações bem definidas. Na lenda de Gautama Buda, o novo instrutor espiritual da humanidade descobre aos 29 anos a existência do sofrimento e da morte. Ele abandona imediatamente o mundo e se refugia na meditação. Assim, a partir dos 30 anos o rumo geral está claro e a alma elimina grande parte das distrações que a faziam perder tempo. Talvez não faltem obstáculos e crises. Mas surgem possibilidades ilimitadas e se abre a fase das grandes realizações. Até que ponto a vida já pode ser vista como um aprendizado espiritual e nada mais? Cada um deve responder por si.
6) Dos 35 aos 42, o indivíduo percebe os limites do seu corpo e sente os primeiros efeitos do envelhecimento físico. Ele ainda pode ter muitos anos de vida ativa, mas para isso terá de manter hábitos pessoais que fortaleçam a saúde. A chamada “crise dos 40 anos” força-o a colocar a sabedoria acima da força. Ele identifica com mais clareza o que pode e o que não pode realizar. Ele reduz as suas ambições externas, aprende a atuar seletivamente e aproveita melhor as oportunidades. É mais realista, e tem mais capacidade de concentração. O êxito, profissional e social, se amplia. Para muitos, agora se aprofunda o despertar espiritual, e o movimento teosófico surge como caminho para a plenitude e a libertação interior.
7) Dos 42 aos 49 anos se completa a transição para a meia-idade. Acentua-se a necessidade de usar mais talento para compensar a perda da vitalidade física. As emoções estavelmente negativas, que nunca foram recomendáveis, agora já não podem ser toleradas porque passam a ter efeitos diretos sobre a saúde. Há um sentido maior de urgência no viver. Ainda se tem saúde, ainda se pode recomeçar a vida, mas não há mais tempo a perder. O final dessa fase traz uma grande tranquilidade a algumas pessoas, quando percebem que já cumpriram certos deveres básicos na vida. Essa percepção afasta o medo e dá tranquilidade para viver o futuro. Em muitos casos os filhos foram criados e a situação econômica está consolidada. A alma se volta para aproveitar melhor a vida. Ama mais profundamente, dá menos atenção a formalidades e vai direto ao que interessa. Pela posição de Saturno em trânsito, a partir dos 47 anos e até os 54 há um período de novo ânimo e grande poder de iniciativa e realização. É quase uma segunda adolescência. Os temas da juventude que ainda não foram bem resolvidos podem ser retomados agora em um esforço profundo de compensação.
8) Entre 49 e 56 anos de idade a alma já tem uma grande quantidade de experiência de vida e ainda está no auge da capacidade de trabalho. Embora seu corpo físico continue envelhecendo e requeira cautela crescente no seu manejo, a verdade é que a capacidade de trabalho intelectual está num patamar mais alto que o das faixas etárias anteriores. Ao mesmo tempo, é cada dia mais importante cortar formas de desperdício da energia vital e adequar a alimentação e outros hábitos pessoais para que haja menos desgaste da saúde. É aconselhável ler, escutar música, meditar, refletir sobre a vida e participar de trabalhos voluntários. A volta à simplicidade preparará uma velhice feliz, fator importante para que a vida após a morte e as próximas vidas sejam mais agradáveis. Os anos da velhice podem ser mais dourados que os da juventude, e poucos velhos gostariam, de fato, de voltar à situação de trinta ou quarenta anos atrás. Eles sabem que a sabedoria e a experiência adquiridas são o seu bem mais precioso.
9) Entre 56 e 63 anos, ingressamos na idade madura. Os efeitos da segunda volta de Saturno se dão entre os 57 e 60 anos, trazendo novas possibilidades de grandes transformações. Há um exame cármico geral e rigoroso e uma severa avaliação dos rumos da vida. É possível que ocorram tempestades e mudanças estruturais. Se não houver necessidade de grandes guinadas no rumo da vida, a renovação será interior e a alma avançará produtivamente para a longa reta final que levara à culminação da existência física. Do ponto de vista prático, estas são algumas das recomendações mais cruciais a partir de agora:
*Ter uma meta nobre de vida, e preservar a capacidade de aprender com cada fato novo;
*Buscar a sabedoria, agir moderadamente, e ajudar a Causa da evolução humana;
*Aproveitar o que cada momento traz de bom e de útil;
*Dedicar uma boa parte do dia a pensar no que é eterno e infinito;
*Caminhar todos os dias meditativamente, junto à natureza ou em local tranquilo;
*Evitar dívidas e outras situações econômicas complicadas;
*Manter atividades produtivas, seja profissionalmente, seja como voluntário;
*Desarmar os conflitos emocionais e os rancores em cada relacionamento pessoal e profissional;
*Manter o humor leve, apreciar a beleza do céu, sorrir para a vida.
Esses itens são recomendáveis para qualquer tempo. Agora, no entanto, eles ganham importância decisiva. Quando nosso corpo é velho e frágil, é indispensável ter sabedoria interior e juventude de espírito. Porém há um desafio nisso. Quanto mais idade temos, mais difícil é fazer mudanças. Por isso é aconselhável aproveitar as fases da vida em que ainda somos suficientemente maleáveis para educar a nós próprios e criar hábitos que levam a uma existência fisicamente longa e espiritualmente correta.
10) Os períodos setenários que vão de 63 até 70 anos, e até 77, 84, 91, 98 e 105 anos de idade, já não são épocas propícias para inovações desnecessárias. No entanto, a atividade profissional e intelectual desenvolvida com serenidade pode avançar no tempo sem limites preestabelecidos.
Viver intensamente o presente é fundamental, mas evite dar importância desnecessária a conflitos. A vida deve ser dedicada cada vez mais à paz interior e aos estados contemplativos. Os assuntos humanos de curto prazo precisam ser tratados com moderação, reconhecendo-se que são coisas de importância passageira. A prioridade é a ampliação dos horizontes e a compreensão das verdades eternas. Já podemos admirar os resultados da nossa vida, mas ainda é possível ampliar o trabalho realizado, aumentando nossa capacidade de amar e de fazer o bem.
Estamos livres de amarras: podemos viver cada dia com intensidade. Assim avançamos harmoniosamente – talvez até além dos cem anos de idade. E quando largarmos definitivamente o nosso velho corpo, iremos para o longo e glorioso período de descanso entre duas vidas, que a filosofia esotérica chama de Devachan. E ali teremos uma existência abençoada até que o ciclo do renascimento comece outra vez.
Consciente da natureza cíclica da vida universal, Benjamin Franklin, o bem-humorado pensador e líder político norte-americano, escreveu ainda jovem o seguinte epitáfio para si mesmo:
“O corpo de Benjamin Franklin, impressor – como a capa de um velho livro, com seu conteúdo gasto e já sem títulos dourados – aqui jaz na condição de alimento para os vermes. Mas o trabalho não estará perdido, pois, segundo ele acreditava, reaparecerá mais uma vez, em uma nova e elegante edição, revista e corrigida pelo Autor.” [3]
A vida é infinita, e só as formas são passageiras. Temos todos os elementos para construir com eficácia a grande obra de arte que é nossa existência atual. Não há conhecimento mais importante do que essa ciência de viver.
A tranquilidade do estudante de filosofia esotérica surge do fato de que ele conhece e compreende uma lei essencial: na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Tudo se recicla. A cada final corresponde um descanso, e também um novo começo. A cada plantio, uma colheita, e a colheita ocorrerá segundo a Lei do Equilíbrio e da Justiça. O universo é simétrico: cada noite tem uma única função, que é preparar o amanhecer.
A concepção realista de uma existência humana como um conjunto perfeito do início ao final é algo que nos permite atuar com sabedoria nas diferentes situações específicas. Deste modo fica mais fácil transformar cada dia da vida em uma pequena e valiosa obra de arte.
NOTAS:
[1] “Os Analectos”, Confúcio, Publicações Europa-América, 128 pp., ver parágrafo 4, Livro II, p. 15.
[2] Para saber mais sobre o Devachan, veja em nossos websites associados os artigos “O Processo Entre Duas Vidas” e “A Teosofia e a Reencarnação”. Leia as Cartas 68, 70A, 70B, 70C, 71, 85A, 85B, e 104 em “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”, Editora Teosófica, Brasília, edição em dois volumes.
[3] Revista “Theosophy”, Los Angeles, EUA, volume II, agosto de 1913, p. 446.
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Uma primeira versão do texto acima foi publicada na revista “Planeta” de São Paulo, em julho de 2002.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
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