A Solidariedade Universal
Brota da Alma Como Algo Inevitável
Brota da Alma Como Algo Inevitável
Carlos Cardoso Aveline
Usada com frequência e nem sempre bem compreendida, a palavra “compaixão” implica um “co-sentimento”, um “sentir junto”. Significa “experimentar o mesmo que o outro, quando o outro sofre”.
Através deste sentimento o indivíduo transcende o egoísmo. Quando a compaixão é profunda, ela surge como algo inevitável: o cidadão derruba os muros separadores em seu coração e supera a ilusão egocêntrica segundo a qual ele está isolado do mundo.
Há uma beleza moral em experimentar a mesma dor dos seres próximos a nós, quando os vemos sofrer. O amor pessoal torna o ser humano solidário com a dor dos seus filhos e de todos os que fazem parte da sua vida diária. A compaixão universal vai mais longe, porque não está presa a individualidades.
O mundo das aparências é enganoso. A luta entre o pessoal e o impessoal é complexa. A fronteira entre as duas dimensões da vida nem sempre está demarcada. Pode haver egoísmo na relação de um indivíduo com aquilo que ele considera divino e espiritual. Pode haver uma boa dose de compaixão universal no modo como amo ou protejo um filho. Não é difícil ver que meu filho não é apenas alguém da minha família. É um resumo da humanidade e uma promessa para o futuro. Kahlil Gibran escreveu:
“Seus filhos não são seus filhos. São as filhas e os filhos da Vida em sua ânsia por si mesma. Eles não vêm de vocês, mas através de vocês, e podem estar com vocês, mas não lhes pertencem. Podem transmitir a eles o seu amor, mas não os seus pensamentos, porque eles têm seus pensamentos próprios. Podem abrigar os corpos deles, mas não as suas almas, porque suas almas moram na casa do amanhã …”.[1]
O desafio evolutivo é olhar impessoalmente para os laços pessoais. Quando guiada por um sentido de justiça imparcial, a atitude solidária para com as pessoas próximas é um passo na direção da compaixão sem fronteiras. Os bons mestres veem seus alunos de modo objetivo. O mesmo princípio se aplica a todas as relações corretas entre pessoas. O amor sincero confia na verdade e por isso não distorce os fatos. Seu olhar é impessoal. Respeitando a voz da consciência, o sábio enxerga com clareza. Deste modo surge uma compreensão que elimina as causas da dor psicológica.
Quando o amor inegoísta supera o apego pessoal, a vida passa a ser guiada pela justiça, pela compaixão e pela percepção da verdade. Há algo muito específico que distingue o sentimento de solidariedade incondicional. Aquele que vive a compaixão vê o sofrimento humano, estuda as suas causas, experimenta-o como se fosse seu, sofre-o, e mesmo assim preserva a paz em seu coração.
Enquanto vive a dor, permanece livre de sentimentos masoquistas. Não precisa glorificar a si mesmo através da visão do seu próprio sofrimento. Não é escravo de sentimentos de culpa. Não desempenha o papel de “sofredor” nem de “salvador” como meio de obter a aprovação ou aplauso da sua própria consciência.
Ele está livre, também, de sentimentos sádicos. Não sente alívio ou prazer diante da dor dos outros. Não precisa do sofrimento alheio para fugir da sua própria dor e não busca a ilusão da vingança. Sente como sua a dor dos outros, mas faz isso sem cair nos círculos viciosos de lamentação e de rancor.
Aquele que vive a compaixão está livre do sadomasoquismo emocional porque transcendeu o apego ou rejeição à sua própria dor.[2] Está sereno, mas não é indiferente. Ele se dedica a combater a origem do sofrimento dos outros, que reconhece como sendo essencialmente seu próprio. Ele vive a felicidade interior por um motivo muito amplo. Seu foco de consciência principal está instalado em ciclos maiores de Carma e Espaço-Tempo, nos quais a Bem-Aventurança é corretamente reconhecida como a inexorável Lei da Vida.
Enquanto vive a dor própria e a dor dos outros, o sábio experimenta a bem-aventurança. Seu olhar está no alto. A impessoalidade brota como uma bênção do coração profundo. Ele não perde tempo ou energia com raiva e lamentações.
Sabe em primeira mão que a felicidade é real, embora seja aparentemente invisível. Conhece o fato de que o sofrimento é ilusório e não passa de um pesadelo, embora seja vivido intensamente por muitos no plano pessoal da consciência. Sabe que a tarefa das pessoas de boa vontade, seja qual for o país em que vivem, é despertar umas às outras do pesadelo do sofrimento desnecessário. Através dos seus atos, ele mostra aos outros que fazer o bem e combater a origem da dor é a bênção libertadora que surge do altruísmo.
A Prática e a Teoria
A filosofia não é compreendida por sepulcros caiados que falam do que não conhecem.
O sentimento de compaixão se situa no coração e não no cérebro. Ideias corretas sobre a vida universal podem revelar a sua presença no coração, talvez; mas não serão capazes de fabricá-lo, e ele não pode ser ensinado ou aprendido no plano verbal.
Sentimentos solidários não constituem um verniz a ser colocado por cima do egoísmo. A compaixão nasce como carne viva quando o coração de alguém desperta e se identifica com a dor alheia, para em seguida perceber como é difícil ser efetivamente útil.
Cada um deve despertar por si mesmo e por mérito próprio. E mesmo assim a ajuda mútua é fundamental. A alma do sábio é um espelho mágico em que se reflete o potencial sagrado do aprendiz.
A substância última da Compaixão não tem nome.
Ela é a energia altruísta que move e impulsiona todas as ações éticas. Através do universo inteiro ela mantém as galáxias vivas, movimenta-as e as faz evoluir. Em linguagem geométrica, a compaixão universal se expressa pela lei da simetria. Ela é a lei da proporção harmoniosa. É a justiça universal que corrige os erros e compensa todo sofrimento. Ela é a origem da solidariedade entre os seres humanos e faz brotar a cooperação entre diferentes espécies. É a amizade incondicional que expressa o despertar da Alma. Constitui o primeiro passo e o último no caminho da sabedoria, e é inseparável do equilíbrio, da moderação e do discernimento.
NOTAS:
[1] “The Prophet”, Kahlil Gibran, Senate, Surrey, UK, Reino Unido, 2003, 114 pp., ver p. 20.
[2] Muitos são os que se apegam ao seu sofrimento, preferindo a dor que conhecem ao invés da felicidade com a qual não estão familiarizados.
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Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
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