O Imortal Detetive Inglês
Aplica Conhecimentos de Teosofia
Carlos Cardoso Aveline
Há mais de um século Sherlock Holmes não envelhece. Alto, magro, nariz de águia, ele surgiu pela primeira vez em Londres em 1887 e habita até hoje a imaginação humana, protegendo inocentes, derrotando criminosos e prevenindo atos de violência.
É em grande parte devido a Holmes que a antiga Londres do final do século 19 permanece viva atualmente. Com sua lupa e sua coleção de cachimbos, esse detetive imaginário é um mito dinâmico e possui uma vitalidade inesgotável. Sua capacidade de fazer deduções lógicas capta a atenção de milhões de pessoas. A cada ano os livros com suas aventuras ganham novas edições. De tempos em tempos são produzidos filmes, e mesmo no século 21 há muitos que mandam cartas para ele pelo correio, usando o tradicional endereço da rua Baker Street, 221-B. Sua popularidade é tamanha que ele tornou-se um dos personagens mais marcantes da literatura de todos os tempos.
Até mesmo o seu criador, Arthur Conan Doyle, foi incapaz de derrotar Sherlock Holmes. Em determinado momento, pensando que as histórias policiais eram uma parte pouco importante da sua obra literária, Doyle tentou colocar um ponto final na série de aventuras e narrou em um conto a morte de Holmes. O público rejeitou a ideia. A pressão de leitores e editores foi tão grande que Doyle foi forçado a revelar em “A Casa Vazia” que na verdade Holmes não morrera, e novas aventuras passaram a ser conhecidas.
Há algo, porém, que muitos não perceberam: por trás da fachada misteriosa, Holmes possui uma visão espiritualista do mundo. Enquanto luta pelo bem e pela justiça, ele usa conhecimentos esotéricos. Conan Doyle esteve interessado em assuntos místicos desde jovem, e dedicou a última parte da sua vida integralmente à divulgação do espiritualismo e do espiritismo, “após 36 anos de estudos esotéricos”, conforme revela no prefácio do seu livro de memórias.
As 60 histórias originais de Holmes revelam com clareza os dramas humanos do ciúme, da cobiça, da mentira e da violência. Em cada aventura o detetive desvenda e destrói o jogo das ilusões – e às vezes das autoilusões. Mas o universo em que Holmes age não parou de crescer. Depois de Conan Doyle, outros escritores vêm adotando o personagem imortal de Baker Street e acrescentando todo tipo de histórias novas, algumas das quais distorcem consideravelmente a sua vida.
Sherlock é um investigador particular cujas áreas de interesse pessoal são extremamente variadas, e em alguns casos paradoxais. É um bom boxeador e, mesmo assim, toca violino como poucos. Pratica uma luta anglo-japonesa, baritsu (bartitsu), mas passa noites em claro fazendo complexas experiências químicas no pequeno apartamento em que mora e trabalha. Seu colega de aventuras, o médico John H. Watson, descreveu o ambiente de trabalho. Há uma mancha de ácido na mesa. Numa estante, uma fileira de formidáveis cadernos de apontamentos e livros de referências que muitos cidadãos teriam prazer em queimar. Há os diagramas, a caixa do violino, a prateleira dos cachimbos, a bolsa persa de tabaco. [1] Não faltam livros, jornais e uma lareira. Ao lado mora a sra. Hudson, que limpa, cozinha, e atende a porta no apartamento de Holmes. O detetive lê textos antigos e religiosos. Nas cenas de abertura do conto “O Pincenê Dourado”, ele passa um dia imerso no exame atento, com lupa, do texto original de um palimpsesto do século XV.[2] Os palimpsestos são pergaminhos cujos textos os escribas costumavam apagar, para que outros textos fossem escritos; mas não é impossível decifrar as inscrições originais que foram raspadas às vezes muito tempo antes.
Dono de um poder mental extraordinário, Holmes não perde tempo ou energia com coisas sem interesse. Seu comportamento externo é imprevisível. Ele não se prende ao mundo das aparências. O investigador é um mestre do disfarce e pode assumir tanto o aspecto externo de um cidadão típico de classe média como de um velho mendigo rabugento, para avançar com mais facilidade em suas investigações.
Nos primeiros parágrafos do conto “Black Peter”, Watson revela que Holmes usa diversos nomes falsos e possui pelo menos cinco pequenos refúgios em Londres, onde o detetive pode trocar de “personalidade” e ter uma base de operações até o final de um trabalho específico qualquer.
Sherlock e a Teosofia, em Dez Pontos
Sherlock Holmes em uma das suas aventuras:
ilustração original da revista “Strand”, de Londres
Holmes enfrenta perigos a cada momento. Sua capacidade de surpreender as pessoas é uma questão de sobrevivência, mas esse fator não seria suficiente. Ele também desenvolveu concentração, coragem, desapego, intuição, altruísmo. Todas estas são características de um estudante avançado da tradição esotérica. Holmes parece havê-las tomado emprestadas do mundo filosófico e psicológico de Conan Doyle.
Vejamos alguns exemplos práticos:
1) O foco definido da consciência. A sua capacidade incomum de concentração da mente sugere uma atmosfera pessoal semelhante ao que ocorre em Raja Ioga, e só pode ser resultado de um longo processo de autotreinamento.
2) Percepção direta. O uso da telepatia e da intuição é bastante evidente na sua forma de trabalhar. O conto “As Faias Cor de Cobre” registra em um dos seus parágrafos iniciais que, quando Holmes e Watson conversam, o detetive costuma responder mais aos pensamentos do seu auxiliar do que às palavras.
3) Plena atenção. Nas primeiras páginas de “Um Escândalo na Boêmia”, Sherlock explica a Watson a diferença entre “enxergar” e “observar”:
“Você enxerga, mas não observa. A distinção é clara. Por exemplo, você tem visto muitas vezes os degraus em que sobe do hall até este quarto.”
“Frequentemente”, diz Watson.
“Quantas vezes?”
“Bem, algumas centenas de vezes.”
“Então, quantos são?”
“Quantos? Não sei.”
“Muito bem! Você não observou. Todavia, tem visto. Aí está meu ponto. Eu sei que há dezessete degraus, porque vi e observei.” [3]
E em “Um Caso de Identidade”, Watson diz a Holmes, referindo-se a certa dama:
“Você parece ter percebido muitas coisas a respeito dela que para mim estavam invisíveis.”
“Não invisíveis, mas que não foram notadas, Watson. Você não soube onde olhar, e por isso perdeu tudo o que era importante.” [4]
4) Uma visita ao Oriente. O investigador fez uma peregrinação pela região mística dos Himalaias. Em “A Casa Vazia”, ele revela que ficou dois anos viajando pelo Tibete. Apresentava-se como um explorador norueguês cujo nome seria Sigerson. Sherlock Holmes conheceu a capital tibetana, Lhasa, e passou alguns dias visitando o próprio Dalai Lama.[5]
5) Trabalhando pelo amor à arte. O investigador não tem um interesse especial por dinheiro e age de modo idealista. Watson escreve: “Como todos os artistas, Holmes ama a arte pela arte, e (…) raras vezes o vi reclamar grande recompensa pelos seus inestimáveis serviços. Tão desprendido – ou caprichoso – se mostra, que muitas vezes se recusa a ajudar os ricos e poderosos, dedicando semanas aos interesses de um cliente humilde, que lhe trouxe um caso cheio de características curiosas e surpreendentes, que apelam para a sua imaginação e lhe desafiam a argúcia.”[6]
6) Inegoísmo. Sherlock é altruísta. Em tudo o que faz, a ética é um fator central. Sherlock atua para defender os desesperados e proteger os que têm sua vida ameaçada, e geralmente consegue vencer os piores patifes. Suas histórias são cavalheirescas. Sua ação tem o objetivo de reeducar o criminoso e colocá-lo de volta no caminho da honestidade. Isso fica claro em vários contos, inclusive “As Três Empenas” e “O Vampiro de Sussex”.
7) Vitórias Anônimas. Sherlock não busca fama. Prefere trabalhar anonimamente, deixando que os detetives da polícia convencional assumam a autoria da solução dos problemas. Em consequência, o detetive Lestrade, da Scotland Yard, sente por ele uma estranha mistura de inveja e gratidão.
8) O Elixir. Desde Alessandro Cagliostro a Helena Blavatsky, passando pela Alquimia Taoista, a ideia de um Elixir da Vida constitui um tema decisivo em estudos teosóficos e filosofia esotérica. No entanto, o Elixir da Imortalidade não pode ser buscado em termos convencionais nem com intenções egoístas.[7]
A história sherlockiana “O Homem que Andava de Rastos” exemplifica o tipo de desastre que ocorre cada vez que alguém esquece a ética e a lei do absoluto altruísmo, na busca de uma vida alquimicamente longa. Perto do final da narrativa, Holmes diz a Watson:
“Quem tenta erguer-se acima da natureza arrisca-se a cair debaixo dela. O mais alto tipo de homem pode voltar à condição de animal se deixa a estrada reta do destino. (…) Vai nisso um perigo – um perigo real para a humanidade. Reflita, Watson, como os materialistas, os sensuais, os mundanos hão de querer todos prolongar suas vidas desprezíveis. As pessoas espirituais não evitariam o chamado a algo mais elevado. Seria a sobrevivência dos menos aptos. Em que espécie de esgoto se transformaria esse nosso pobre mundo?”
E então Watson escreve:
“De repente desapareceu o sonhador, e Holmes, o homem de ação, pulou da sua cadeira: ‘Creio que não há mais nada a acrescentar’…”. [8]
9) Impedindo um Suicídio. Sherlock parece saber tanto quanto os teosofistas que o suicídio deve ser evitado, porque expande radicalmente a dor da alma em quase todos os casos, fazendo com que o sofrimento dure muito mais tempo do que se este crime não ocorresse.
A filosofia esotérica ensina que o suicídio raramente libera alguém de dificuldades. Ninguém pode efetivamente “matar” a si mesmo: as pessoas desesperadas podem apenas destruir seus corpos físicos, e em tais casos usualmente enfrentam situações pós-morte de extrema infelicidade. [9]
Perto do final de “A Inquilina de Rosto Coberto”, devido a alguma compreensão intuitiva ou dedução de alto nível, o detetive vê que uma mulher que sofre muito há longos anos planeja o suicídio. Ele vira-se rapidamente para ela e diz:
“Sua vida não lhe pertence. Não pense em terminar com ela.”
“Que utilidade pode ela ter para alguém?”, pergunta a senhora.
“Quem sabe? O exemplo do sofrimento suportado com paciência é já em si a mais preciosa das lições para um mundo impaciente.” [10]
10) Inofensividade. Holmes segue tanto quanto possível o princípio da não-violência. Enfrenta desarmado inúmeras situações de perigo, mas poucas vezes necessita agredir fisicamente um oponente. Quando deve prender alguém, Holmes pede apoio da polícia e arma uma cilada tão eficaz que o criminoso, colhido de surpresa, percebe a inutilidade de qualquer resistência. Então, graças à sua força mental, ele geralmente impõe ao criminoso uma conversa final que é ao mesmo tempo sincera e equilibrada. A história é esclarecida para todos os envolvidos nela, e os maus sentimentos são evitados e eliminados, tanto quanto possível.
Holmes trabalha com um grau elevado de desapego pessoal e abstração. O fato de que ele pratica ahimsa, ou não-violência, fica claro em várias narrativas. No conto “A Ponte de Thor”, Watson afirma:
“…Bem fazia eu de andar armado, porque ele pouco cuidava da sua segurança pessoal quando tinha o espírito absorvido por um problema, de modo que mais de uma vez o meu revólver nos havia prestado bons serviços.” [11]
A atitude de Holmes diante dos criminosos comprova que ele está livre de sentimentos de ódio. O detetive tem como regra pessoal deixar, quando possível, uma saída elegante a seus adversários. Porém só abre essa possibilidade depois que já decifrou completamente o enigma, previu todas as reações possíveis do seu adversário e possui um antídoto eficaz para cada uma delas. Tendo garantido uma completa vitória, ele frequentemente deixa de lado a burocracia legal e faz acordos extrajudiciais. Em alguns casos os criminosos pagam indenizações informais às suas vítimas, como no caso de “As Três Empenas”. Nesse conto, aliás, ele faz a seguinte declaração de princípios:
“Eu não sou a lei, mas represento a justiça até onde chegam os meus fracos poderes.” [12]
Jejum, Contemplação e Percepção
Uma das técnicas tipicamente espirituais empregadas por Holmes é o jejum, que ele usa para aumentar seu poder de concentração e sua intuição. Na cena inicial do episódio “A Pedra Mazarino”, a sra. Hudson pergunta:
“Quando é que o senhor quer jantar, Mr. Holmes?”
E ele responde:
“Depois de amanhã, às sete e meia.”
Pouco depois, ele dialoga com Watson:
“Espero que você não tenha aprendido a desprezar o meu cachimbo e o meu lamentável tabaco, não? É o que nos últimos dias vem substituindo para mim a comida.”
“Mas por que não come?” – pergunta Watson.
“Porque as funções da mente se afinam quando a gente as deixa a pão e água. Como médico, meu caro Watson, você há de convir – o que a digestão ganha para abastecer o sangue, fica perdido para o cérebro. E eu sou cérebro, Watson. O resto de mim é um mero apêndice. Portanto, é o cérebro que para mim importa.” [13]
A boa música é uma forma eficaz de trazer paz à alma. Para Holmes, tocar violino é uma forma de meditação. No momento em que o problema enfrentado parece mais difícil, ele se desliga de todas as coisas e passa longas horas dedicado exclusivamente à música, enquanto visita “a terra dos violinos, onde tudo é doçura, delicadeza e harmonia”, conforme ele confessa em “A Liga dos ‘Cabeças Vermelhas’ ”.[14] Em tais casos, à noite, o violino soa até madrugada. A técnica de elevação da consciência para fins investigativos produz bons resultados: na manhã seguinte ele tem na cabeça a chave para a solução do problema.
Em outras ocasiões, porém, Holmes não utiliza a música e fica como em um estado de torpor no plano físico, enquanto sua mente se concentra em algum nível superior de percepção. No início do conto “O Homem que Andava de Rastos”, Watson recebe um telegrama irônico:
“Venha imediatamente se não for incômodo. E, se for, venha da mesma forma. – S.H.”
Quando chega a Baker Street, Watson encontra Holmes encolhido em sua cadeira de braços, com o cachimbo na boca e a testa enrugada. Ele relata:
“Com um aceno de mão, Sherlock indicou minha velha cadeira de braços, mas, fora isso, durante meia hora não deu qualquer indício de haver notado minha presença ali. Então, com um estremecimento do corpo, pareceu despertar do seu devaneio e, com seu habitual sorriso excêntrico, deu-me as boas-vindas….”
E Holmes disse:
“Você me desculpará uma certa abstração de espírito, meu caro Watson. Alguns fatos curiosos foram submetidos à minha apreciação nas últimas vinte e quatro horas (…).” [15]
Sherlock e as Cartas dos Mahatmas
Antes de começar a escrever histórias sobre o detetive de Londres, Conan Doyle estudou durante algum tempo os ensinamentos originais de teosofia. Ele leu cuidadosamente os livros de Alfred Sinnett baseados nas Cartas dos Mahatmas. Sherlock Holmes foi fortemente influenciado por tais leituras. Vejamos alguns exemplos.
Em “O Mundo Oculto”, Sinnett reproduz trecho de uma carta recebida de um Mestre Oriental:
“…Cada pensamento do homem, ao ser produzido, passa ao mundo interno e se torna uma entidade ativa associando-se – amalgamando-se, poderíamos dizer – com um elemental, isto é, com uma das forças semi-inteligentes dos reinos. (…) Desse modo … o homem está constantemente ocupando sua corrente no espaço com seu próprio mundo, um mundo povoado com a prole de suas fantasias, desejos, impulsos e paixões…”. [16]
Em “Um Estudo em Vermelho”, Holmes defende a mesma ideia ao formular sua teoria do desenvolvimento mental:
“…Acho que o cérebro do homem é originalmente como um pequeno sótão vazio, que temos de abastecer com a mobília que escolhemos. Um tolo pega todo e qualquer traste velho que encontra pelo caminho, de modo que o conhecimento que poderia lhe ser útil fica de fora por falta de espaço ou, na melhor das hipóteses, acaba misturado com uma porção de outras coisas, o que dificulta o seu possível emprego. Mas o trabalhador de talento é muito cuidadoso a respeito do que coloca no seu sótão-cérebro. Só acolhe as ferramentas que podem ajudá-lo a realizar o seu trabalho, mas dessas ferramentas ele tem uma enorme coleção, e tudo disposto na mais perfeita ordem. É um erro pensar que o pequeno quarto tem paredes elásticas e pode se distender em qualquer dimensão. Acredite, chega uma época em que para cada novo conhecimento é preciso esquecer alguma coisa que conhecia antes. É da maior importância, portanto, não ter fatos inúteis empurrando para fora os úteis.” [17]
Em outras palavras, a diferença entre a consciência de Sherlock Holmes e a consciência de um cidadão comum está no modo como são produzidas as formas de pensamento. O contraste entre o iogue experiente e o cidadão leigo é semelhante. Um Mestre afirma:
“O adepto [isto é, o sábio] produz essas formas conscientemente; outros homens as atiram fora inconscientemente.” [18]
No desenvolvimento e no uso dos seus poderes de dedução, Sherlock tem como base os ensinamentos esotéricos orientais. Em uma das Cartas dos Mahatmas vemos o seguinte trecho:
“…Mantendo sempre em mente o velho e sábio axioma ‘como embaixo, assim é em cima’ – isto é, o sistema universal de correspondência – tente compreender por analogia. Assim você verá que nesse dia, nesta terra atual, em cada mineral, etc., há um tal espírito [cósmico]. Direi mais. Cada grão de areia, cada pedra arredondada ou rochedo de granito é aquele espírito [universal] cristalizado ou petrificado. (…) Como, então, poderíamos duvidar de que um mineral contém em si uma centelha do Uno, do mesmo modo que tudo o mais nesta natureza objetiva?” [19]
E John Watson encontra um artigo – significativamente intitulado “O Livro da Vida” e escrito por Sherlock Holmes – no qual vê exatamente a mesma ideia:
“A partir de uma gota d’água, um lógico poderia inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara, sem ter visto nenhum dos dois, nem ter ouvido falar de qualquer um deles. Assim toda a vida é uma grande cadeia, cuja natureza conhecemos sempre que nos mostram um único de seus elos. Como todas as outras artes, a Ciência da Dedução e Análise só pode ser adquirida por meio de longo e paciente estudo, nem é a vida bastante longa para que um mortal alcance a maior perfeição possível nesta arte.” [20]
Em outras palavras, o estudante de filosofia esotérica necessita várias encarnações para compreender completamente a relação entre microcosmo e macrocosmo, vida mortal e vida imortal.
O Poder Magnético do Silêncio
O bom senso complementa a meditação abstrata. Em uma investigação, como na vida em geral, o cuidado e a eficiência no uso da informação são fatores decisivos. O investigador deve saber muito e falar pouco. Seu ponto de vista precisa ser revelado apenas no momento certo. O silêncio, característica central do método de Sherlock Holmes, é igualmente importante para a prática espiritual e a concentração da mente de qualquer estudante de filosofia.
Embora confie em Watson, o detetive pouco ou nada diz ao seu leal amigo até alcançar a resposta final para o enigma que trata de resolver. A filosofia esotérica afirma que há um motivo para o silêncio: o pensamento intuitivo é feito de uma matéria mental tão sutil que se quebra e contamina quando misturada com a matéria mais densa dos pensamentos de outras pessoas, por mais bem-intencionadas que elas sejam. A “voz do silêncio” deve ser ouvida no templo do coração. Por isso há certas coisas que só nos atrevemos a falar verbalmente quando estão suficientemente maduras, e não antes. As pessoas atentas ou afinadas conosco talvez possam perceber nossos sentimentos sem necessidade de palavras.
Apesar das suas qualidades positivas, Holmes tem falhas significativas. O alto nível de tensão enfrentado no trabalho tem efeitos negativos sobre sua maneira de viver, e Watson menciona com frequência os seus momentos de queda e fracasso.
Um grande herói necessita de um grande cenário. A cidade em que Sherlock Holmes vive e trabalha é tão imortal como ele. O tempo não altera aquela velha Londres misteriosa, imersa em neblina, com suas ruas percorridas por belas carruagens. Um leitor atento talvez seja capaz de ouvir o ruído das patas dos cavalos. À noite, lampiões iluminam fracamente as ruas da cidade, que as descrições de Watson permitem a todo leitor enxergar com certa clareza. O próprio Holmes talvez possa ser encontrado pela imaginação em algum beco escuro, fazendo uma investigação secreta. Estará disfarçado como um vendedor de livros raros, ou revestido da condição de mendigo, para enganar um bando de ladrões em cuja prisão não haverá necessidade de violência.
Como personagem popular de histórias policiais, não se deveria esperar que Sherlock Holmes fosse um assíduo leitor das obras de Platão, de Plotino ou de Helena Blavatsky, ou um associado ativo da Loja Independente de Teosofistas.
Conan Doyle não é um dos maiores pensadores da história da humanidade. No entanto, pode-se perceber facilmente em Sherlock Holmes a marca de uma pessoa ética, que luta pelo bem e que desenvolveu consideravelmente os poderes altruístas da abstração, da concentração mental e do autossacrifício por um ideal de justiça. A sua visão prática da vida tem aspectos essenciais em comum com os ensinamentos originais de filosofia esotérica.
No capítulo dois do livro “A Chave da Teosofia”, H.P. Blavatsky escreve:
“… Teosofista é aquele que age teosoficamente.” [21]
E no parágrafo final da história “Liga dos Cabeças Vermelhas”, quando Watson afirma que Sherlock é um benfeitor da raça humana, o detetive responde citando Flaubert:
“O homem não é coisa alguma, o seu trabalho é tudo.”
NOTAS:
[1] “As Aventuras de Sherlock Holmes”, de Conan Doyle, volume IV, Círculo do Livro, SP, 300 pp., veja o conto “A Casa Vazia”, p. 170.
[2] “As Aventuras de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Círculo do Livro, SP, volume V, “O Círculo Vermelho”, 342 pp., ver pp. 89-90.
[3] “Aventuras de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Ed. Melhoramentos, SP, 290 pp., sem data, provavelmente anos 1960, ver p. 10. A passagem foi revista conforme o original em inglês: “The Complete Stories of Sherlock Holmes”, Sir Arthur Conan Doyle, Wordsworth Library Collection, Wordsworth Editions, UK, 1408 pp., 2007, ver p. 431.
[4] “Aventuras de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, p. 67. A passagem foi revista conforme o original em inglês: “The Complete Stories of Sherlock Holmes”, Sir Arthur Conan Doyle, Wordsworth Library Collection, Wordsworth Editions, UK, 1408 pp., 2007, ver p. 476.
[5] “As Aventuras de Sherlock Holmes”, Círculo do Livro, volume IV, obra citada, página 162.
[6] “As Aventuras de Sherlock Holmes”, Círculo do Livro, volume IV, página 277, primeiros parágrafos do conto “Black Petter”.
[7] Veja em nossos websites o ensaio “O Elixir da Vida”, de Godolphin Mitford.
[8] “Histórias de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Edições Melhoramentos, SP, 276 pp., 1966, páginas 198-199. Esta passagem foi revisada e corrigida seguindo o texto original em inglês: “The Complete Stories of Sherlock Holmes”, Sir Arthur Conan Doyle, Wordsworth Library Collection, Wordsworth Editions, UK, 1408 pp., 2007, p. 1359.
[9] Sobre o suicídio, Helena Blavatsky escreveu:
“Tanto quanto o assassinato, o [suicídio] é sempre injustificável, por mais desejável que possa parecer às vezes. (…) O indivíduo que afirma que algum ser humano pode sob quaisquer circunstâncias pôr um fim à sua própria vida é responsável por um erro tão grave e um sofisma tão pernicioso quanto o erro da nação que pensa ter o direito de matar milhares de pessoas inocentes em uma guerra, sob o pretexto de vingar a injustiça feita contra uma pessoa. Todos os raciocínios deste tipo são frutos de Avidya [ignorância], encarados como filosofia e sabedoria.” Blavatsky diz que em qualquer situação a vida pós-morte de um suicida é “cheia de perigos”. No entanto, o carma individual pode ser muito diferente em cada caso, e ela acrescenta: “há esperança para certos suicidas, e até em muitos casos UMA RECOMPENSA, se a vida tiver sido sacrificada para salvar outras vidas e não tiver havido outra alternativa se não o suicídio”. Blavatsky esclarece: “Nenhum ser humano, repetimos, tem o direito de colocar um fim à sua existência apenas porque ela é inútil.” (Veja o artigo “Is Suicide a Crime?” em “Collected Writings”, Helena P. Blavatsky, TPH, volume IV, pp. 258-259.) Em outra ocasião, Blavatsky escreveu que o suicídio é “detestável e absurdo, já que ninguém pode evitar a reencarnação destruindo sua própria vida”. (“Collected Writings”, Helena P. Blavatsky, TPH, volume IV, p. 301.)
[10] “Histórias de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Edições Melhoramentos, p. 235. A passagem foi revisada conforme o original em inglês. Ver “The Complete Stories of Sherlock Holmes”, Sir Arthur Conan Doyle, Wordsworth Library Collection, Wordsworth Editions, UK, 1408 pp., 2007, p. 1382.
[11] “Histórias de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Edições Melhoramentos, SP, 276 pp., 1966, página 170.
[12] “As Três Empenas”, em “Histórias de Sherlock Holmes”, obra citada, pp. 100-101.
[13] “Histórias de Sherlock Holmes”, obra citada, p. 67. Esta passagem foi revisada e corrigida seguindo o texto original em inglês: “The Complete Stories of Sherlock Holmes”, Sir Arthur Conan Doyle, Wordsworth Library Collection, Wordsworth Editions, UK, 1408 pp., 2007, p. 1272.
[14] Sobre a “terra dos violinos”, veja “Aventuras de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Edições Melhoramentos, SP, 290 pp., página 47.
[15] Veja os primeiros parágrafos do conto “O Homem que Andava de Rastos”, em “Histórias de Sherlock Holmes”, Conan Doyle, Ed. Melhoramentos, quarta edição, páginas 175-176. Em inglês, “The Complete Sherlock Holmes Stories”, Sir Arthur Conan Doyle, Wordsworth Library Collection, Wordsworth Editions, UK, 1408 pp., 2007, ver pp. 1344-1345.
[16] “O Mundo Oculto”, Alfred P. Sinnett, Editora Teosófica, Brasília, 232 pp., ano 2000, ver pp. 130-131.
[17] “Um Estudo em Vermelho”, Arthur Conan Doyle, L&PM Pocket, Porto Alegre, 192 páginas, edição de 1998, reimpressão de 2010, pp. 24-25.
[18] “O Mundo Oculto”, Alfred P. Sinnett, Editora Teosófica, Brasília, 232 pp., ano 2000, ver p. 131.
[19] “Cartas dos Mahatmas”, Ed. Teosófica, Brasília, volume I, Carta 67, pp. 288-289. Em inglês, “The Mahatma Letters”, edição de 1926, publicada por T. Fisher Unwin Ltd., Londres, Reino Unido. O livro está disponível em nossos websites. Veja a Carta XV, pp. 92-93.
[20] “Um Estudo em Vermelho”, Arthur Conan Doyle, L&PM Pocket, Porto Alegre, 192 páginas, edição de 1998, reimpressão de 2010, pp. 29-30. A tradução deste trecho foi corrigida em um par de pequenos erros com base no original em inglês: “A Study in Scarlet”, part I, “The Science of Deduction”, “The Complete Sherlock Holmes Stories”, p. 22.
[21] Clique para ver “A Chave da Teosofia – 02”.
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Leia em nossos websites o artigo “Conan Doyle Estudou Teosofia”.
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O artigo acima está publicado também em inglês: “The Philosophy of Sherlock Holmes”.
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Para conhecer um diálogo documentado com a sabedoria de grandes pensadores dos últimos 2500 anos, leia o livro “Conversas na Biblioteca”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 28 capítulos e 170 páginas, a obra foi publicada em 2007 pela editora da Universidade de Blumenau, Edifurb.
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