A Ação Correta Como Caminho Para A Felicidade
Carlos Cardoso Aveline
A palavra “responsabilidade” simboliza uma capacidade de responder às situações que a vida coloca diante de nós, e também de arcar com as consequências de ações prévias, agindo à altura de cada novo desafio. Na tentativa de agir corretamente, porém, nem tudo é simples ou previsível, e uma ou duas perguntas parecem ser inevitáveis:
“A que situações devemos responder? Quais são os desafios que devem ser atendidos prioritariamente, no caminho do autoconhecimento?”
É provável que, antes mesmo de reagir a qualquer desafio externo, o primeiro dever de alguém seja ouvir a sua própria consciência e permanecer leal a ela. E isto parece ser verdade por um motivo muito simples. Se alguém não for leal consigo mesmo, deixará, mais cedo ou mais tarde, de ser leal com os outros. Em compensação, quando o indivíduo permanece leal para com a sua própria consciência, ele tende naturalmente a ser honesto com os outros, nas diferentes situações da vida.
É relativamente fácil perceber que, para ser íntegro como indivíduo, um cidadão deve tentar ser honesto com todos os seres, e deve ser ainda mais honesto consigo mesmo e em relação às suas próprias decisões. Porém, nem todos têm a autoestima necessária para ser honestos em seu mundo interior. Muitos enganam a si mesmos, e convencem a si próprios de coisas que são falsas. A relação entre intenção e ação, por exemplo, é complexa e desafiadora, e constitui um teste constante para a coerência interior de qualquer um.
Eliphas Levi, um precursor de Helena Blavatsky, escreveu:
“Toda intenção que não se manifesta por atos é uma intenção vã, e a palavra que a exprime é uma palavra ociosa. É a ação que prova a vida, e é também a ação que prova e demonstra a vontade. Por isso, está escrito nos livros simbólicos e sagrados que os homens serão julgados, não conforme seus pensamentos e suas ideias, mas segundo suas obras. Para ser, é preciso fazer.” [1]
Se temos uma intenção nobre, pois, é nosso dever transformá-la em atos. Isso não deve ser feito a partir de uma perspectiva de curto prazo, nem esperando resultados fáceis, mas como um compromisso consciente cujo prazo de duração é ilimitado. Deve-se evitar expectativas pessoais, e Robert Crosbie, o principal fundador da Loja Unida de Teosofistas, escreveu certa vez a um amigo:
“Lamento que a viagem tenha sido difícil e sem resultados imediatos, mas nós sabemos que não há derrota na ausência de resultados, se fazemos o melhor que podemos. É possível confiar nisso e avançar para cumprir o próximo dever, livres de qualquer ansiedade.”
Sábias palavras, e Crosbie fez da sua vida uma lição prática de desapego. Na mesma carta, ele afirma que o grande talismã teosófico é o cumprimento do dever:
“Nós não somos nosso corpo, nosso cérebro, nossas circunstâncias, obrigações nem qualquer coisa mutável; tudo isso constitui apenas nossos instrumentos e oportunidades; todos estes fatores mudam e deixam de existir com o tempo. Em todos eles, ‘o dever é o supremo talismã’.” [2]
Se reconhecemos a importância do cumprimento do dever, surge em seguida uma questão prática. É preciso saber quem deve decidir qual é nosso dever. A resposta correta é que, na decisão, deve haver uma autonomia com bom senso. Não há liberdade sem responsabilidade, e a recíproca é verdadeira. Independência e solidariedade devem estar juntas, cabendo a cada indivíduo fazer a combinação adequada entre estes dois fatores da vida.
No momento atual da experiência humana, os cidadãos já não cumprem os seus deveres éticos apenas por que alguém faça algum apelo emocional aos seus bons sentimentos. Tais apelos têm agora cada vez menos força, em parte porque a adoração do dinheiro e a ostentação de poder e de status social passam a ser a regra geral, e se convertem em um dogma quase obrigatório da sociedade consumista.
A sociedade materialista tem sua própria teologia, e ela é totalitária. Na utopia neoliberal, o deus onipresente, que serve como medida de todas as coisas, é a moeda emitida pelos bancos centrais. Os devotos pagadores de impostos, tementes ao deus todo-poderoso que mora no Banco Central, fazem as suas adorações rituais através dos gastos e dos investimentos financeiros. Os shopping-centers são templos menores para o deus monetário. Os bancos constituem os grandes locais de penitência. Os milagres divinos são inúmeros, e são realizados pela moderna tecnologia. Como os outros deuses monoteístas, o dinheiro aprova e provoca guerras, e muita violência é feita em seu santo nome, tanto em pequena como em grande escala.
Sempre que podem, os devotos procuram o êxtase de um contato místico e direto com o deus ilimitado da riqueza materialista. Eles fazem isto através dos “sonhos de consumo” e de outros desejos de falsa transcendência, todos cuidadosamente fabricados e popularizados pelos altos sacerdotes da propaganda comercial. Os pobres e marginalizados são automaticamente considerados seres inferiores e destituídos de alma, porque o dinheiro é a alma da vida e do negócio, na religião da materialidade. Destituídos de alma monetária, os pobres passam a ser socialmente invisíveis: ninguém percebe sua presença.
O estudante da teosofia autêntica avança na contramão desta teologia materialista. Ele observa com calma e lucidez a falta de ética e de bom senso a seu redor. Ele ouve a sua própria consciência, e assim derruba os falsos consensos. Ele percebe que, como indivíduo, só tem a ganhar, e não a perder, por cumprir com independência o seu dever ético diante da vida. Sabe que o caminho da felicidade está em agir correta e conscientemente, e não por atos reflexos ou por obediência hipnótica.
Abordando o tema da ação correta, Robert Crosbie escreveu:
“Aqueles que são sábios têm um ponto de vista amplo e avaliam, antes de agir, todos os resultados possíveis. Para eles, tomar uma decisão é, em grande parte, uma questão de cumprimento do dever, independentemente do que os outros pensem, exceto quando a opinião dos outros possa interferir com o cumprimento de deveres mais amplos, e influenciar outras ocasiões, futuras. Na verdade, há tantas coisas que devem ser levadas em conta e que só a pessoa que está envolvida pode ver e colocar em prática, que ninguém mais, exceto ela própria, é capaz de dizer o que deve ser feito. Podem ser colocados os princípios gerais: e cada indivíduo deve ficar livre para aplicá-los como achar melhor. Não há progresso de outro modo. Em última análise, para que não enganemos a nós mesmos, temos que perceber se somos governados mais por impulsos do que pelo sentimento de dever. Seja o que for, portanto, que seja decidido com toda honestidade por nós mesmos, esse é o nosso dever, e mais ninguém poderá ser nosso juiz.” [3]
Cumprir nossas obrigações é uma fonte de bênçãos, e o “Dnyaneshwary”, um famoso comentário ao “Bhagavad Gita” hindu, deixa isso claro. Escrito no final do século 13 e elogiado por H.P. Blavatsky no prefácio de “A Voz do Silêncio”, o “Dnyaneshwary” defende a ioga do cumprimento das nossas obrigações. O abandono do dever, para esta obra, é uma desgraça:
“Assim como a vida abandona um corpo morto, assim como a prosperidade não é encontrada na casa de um pobre e como a luz se extingue quando o lampião é apagado, assim também, quando alguém falha no cumprimento das suas obrigações, fica separado da fonte de toda felicidade.” [4]
É claro que o dever mais alto e mais elementar que podemos cumprir é o dever de agir a cada momento de modo responsável. Nisso, porém, discernimento e bom senso são essenciais, e o “Dnyaneshwary” alerta:
“A ilusão é a irmã mais nova da esperança, e pode causar destruição tão rapidamente quanto as crianças devoram um pacote de doces. A ilusão fortalece o desejo. O desejo e a raiva têm como origem o egoísmo. O desejo e a raiva criam a hipocrisia e suprimem a verdade. Eles destroem a paz mental e materializam a ilusão (Maya) que vence até os sábios.” [5]
E acrescenta:
“Aqueles que deixam de lado o seu dever (Dharma) e são levados pelo orgulho de haver chegado a alguma coisa, ou se perdem pelos objetos de satisfação pessoal, cairão como vítimas de um agudo sofrimento. Eles perderão não só a prosperidade, mas terão dificuldade até mesmo para aproveitar o que possuem.” [6]
Robert Crosbie aborda o mesmo desafio:
“A coisa mais importante contra a qual a maior parte dos estudantes devem ter cuidado é a autoilusão. A versatilidade de Manas [a Mente] inferior neste sentido está além de toda descrição. Assim, temos de observar para ver se as nossas intenções ostensivas não são uma vestimenta para outras intenções, mais profundas.” [7]
O “Dnyaneshwary” propõe a alternativa para este problema:
“Agarre-se ao seu dever e nunca deixe que os seus sentidos o desviem. As criaturas aquáticas morrem quando deixam a água; um homem morre [interiormente] quando deixa de lado o seu dever. Um homem que emprega todos os seus recursos disponíveis para desenvolver ações adequadas sem qualquer desejo de recompensa (…..) está livre de todo mal. Seus pecados desaparecem do mesmo modo como a doença com o uso de néctar, ou a ilusão, quando são escutados os ensinamentos dos sábios.” [8]
Assim, a ioga do cumprimento do dever é a ioga da ação responsável, e constitui um dos caminhos mais diretos para a verdadeira felicidade e para a satisfação duradoura.
Não é difícil ver que, no século 21, este dever passa a ter uma forte dimensão planetária. Já são cada vez mais numerosos aqueles que percebem o brilho da vida universal fluindo além do horizonte –aparentemente estreito – das suas vidas pessoais.
Para tais indivíduos, o caminho natural a seguir é o da simplicidade voluntária em relação às coisas do mundo físico. Há, porém, neste caminho, uma ambição ilimitada e impessoal de aprender, e de ser útil, no processo que leva a uma nova consciência de ética planetária e de fraternidade universal.
NOTAS:
[1] “Dogma e Ritual da Alta Magia”, Eliphas Levi, Ed. Pensamento, SP, 466 pp., p. 239.
[2] “The Friendly Philosopher”, Robert Crosbie, Theosophy Company, Los Angeles, 1945, 416 pp. O primeiro trecho citado está na página 99. O segundo, na página 100.
[3] “The Friendly Philosopher”, obra citada, p. 40.
[4] “Gita the Mother”, Dnyaneshwar Maharaj and Manu Subedar, Kalyany Publishers, New Delhi, India, 1972, reprinted, 2000, 318 pp., ver p. 74.
[5] “Gita the Mother”, p. 78.
[6] “Gita the Mother”, p. 74.
[7] “The Friendly Philosopher”, obra citada, p. 124.
[8] “Gita the Mother”, p. 74.
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Para conhecer a teosofia original desde o ângulo da vivência direta, leia o livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline.
Com 19 capítulos e 191 páginas, a obra foi publicada em 2002 pela Editora Teosófica de Brasília.
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