Pomba Mundo
 
Freud e os Mestres de Sabedoria Veem a
Religiosidade Dogmática de Modo Semelhante
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
A Psicanálise das Religiões com mold
 
Sigmund Freud (1856-1939), o fundador da Psicanálise
 
 
 
O caminho da independência e da investigação pessoal exige do buscador a coragem de enfrentar a solidão. Ele se liberta em grande parte da preguiça mental e do dogmatismo, mas tem que pagar um preço por isso, como todo aquele que abre seu próprio caminho. Quando aprofunda a sua visão crítica sobre as tentativas de viajar de carona pelo caminho espiritual, o estudante encontra um ponto de apoio e um reforço desafiador na obra de Sigmund Freud e na análise que ele faz sobre as formas convencionais de religião.
 
A análise crítica das religiões é inevitável: se mesmo depois de vários milênios de civilizações tão religiosas ainda existe tamanha dor no mundo, é porque há algo profundamente errado nas nossas religiões.
 
De fato, uma coisa é o mundo divino, e outra – bem diferente – é a ideia imperfeita que fazemos dele. Tudo o que pensamos de Deus foi feito à imagem do homem. A divindade é um espelho em que projetamos não só nossas esperanças e sentimentos nobres, mas também nossa ignorância – e isso tanto individual como coletivamente.
 
Basta olhar a história humana dos últimos 2000 anos para reconhecer uma quantidade imensa de crueldades, loucuras, guerras e massacres que foram abençoados e incentivados por altos sacerdotes em nome de Deus, Allah, Jeová, dos deuses do hinduísmo e assim por diante. A fé em Deus tem servido de álibi e justificativa para alguns dos piores crimes da história da humanidade. Diante disso, é recomendável observar nossas religiões do ponto de vista daquele velho cientista e sábio que inventou a psicanálise na primeira metade do século 20, com o objetivo de compreender o sofrimento humano.
 
A boa psicologia, como a boa tradição esotérica, nos convida a assumir nossa responsabilidade diante da vida, abandonando o mau hábito de atribuir nossos erros à “vontade de Deus”. Se quisermos abrir espaço para a religiosidade dos novos tempos, que se apoia na liberdade de pensamento, devemos reexaminar o lado difícil e sombrio da religiosidade autoritária herdada por nós dos tempos antigos. Uma relação diferente com o mundo divino – livre de dogmas e aberta para a mudança – poderá conduzir-nos sem perda de tempo a uma nova era de solidariedade entre todos os seres. No entanto, será preciso uma certa dose de persistência. Porque a verdade incomoda, subverte. Ela questiona nossas rotinas mentais e mostra coisas que preferiríamos ignorar.
 
Todos sabem, por exemplo, que o povo brasileiro é profundamente místico e cristão. Já em l500 os portugueses chegaram aqui precisamente em nome da salvação dos indígenas para o reino de Deus. Pero Vaz de Caminha escreveu, em sua famosa “Carta do Achamento”, que o melhor proveito a ser tirado destas terras da “Vera Cruz” seria a salvação das almas dos seus primeiros habitantes. Mas essa bela piedade cristã era usada para encobrir com palavras generosas – como um verniz – as verdadeiras finalidades geopolíticas, estratégicas e econômicas do reino lusitano. Na prática, a teoria era outra. Pouco depois da posse portuguesa, teve começo um longo e impiedoso massacre dos povos nativos. Ainda hoje cabe perguntar por que há tamanha injustiça na sociedade brasileira depois de 500 anos de intensa evangelização, e tanta mentira, corrupção e violência em meio ao nosso povo bom e cristão.
 
Nenhuma religião pode atirar a primeira pedra. O povo da Índia milenar tem, certamente, uma das tradições religiosas mais ricas e inspiradoras do planeta. Mas a população do país vive na miséria, a classe política é corrupta, e o grande líder da independência do país, Mohandas Gandhi, foi assassinado a sangue frio na metade do século 20 por fanáticos cheios de sentimento religioso, simplesmente porque queria a tolerância mútua e a convivência pacífica entre pessoas de fés diferentes. A Índia milenar investe hoje em armas atômicas uma fortuna que poderia alimentar melhor seu povo. O único objetivo é sustentar uma corrida armamentista contra outro país bastante religioso, o Paquistão. Aliás, também o Paquistão desenvolveu armas atômicas em meio à pobreza da sua própria população.
 
Os povos árabes são igualmente místicos e tementes a Deus, mas por que têm odiado tanto os judeus e, em alguns casos, toda a sociedade ocidental? A religião de Gautama não está livre do pecado. Há casos de grandes líderes e famosos monges budistas vindos para o ocidente que se transformaram em bêbados incuráveis e completos fracassos morais, enquanto procuravam manter o discurso e a pose de “grandes sábios” diante do assombro dos seus seguidores e discípulos.[1]
 
Pessoa alguma poderia duvidar: o cristianismo é uma das melhores religiões do mundo. Mas será que as autoridades religiosas precisavam matar tantos milhares de pessoas em nome de Jesus, humilhando, torturando e queimando na fogueira, durante os longos tempos da Inquisição, todo aquele que parecesse discordar de alguns dos seus dogmas, entre os quais não faltavam superstições absurdas? O padre Antônio Vieira, por exemplo, foi um dos criadores do que há de melhor na alma do povo brasileiro. Pioneiro da luta pela ética na política e pelo respeito aos indígenas, pensador independente e de ideias messiânicas, ele passou vários anos da sua vida nos cárceres da “Santa” Inquisição em Portugal. Teve sorte de não ser morto.
 
No começo do século 19, o grande místico e maçom Hipólito da Costa fugiu dos cárceres da Inquisição portuguesa para ir viver em Londres e fundar no exílio o primeiro jornal brasileiro, Correio Braziliense. Mas milhares de pessoas não puderam sobreviver à perseguição do fanatismo religioso. Centenas de milhões viveram aterrorizados e sem liberdade de pensamento. Quando é que o Vaticano fará, finalmente, uma autocrítica mais ampla e corajosa em relação aos desatinos da Inquisição? Como foi possível que uma “Igreja de Deus” fizesse tais coisas?
 
Como? Bem, Freud explica isso. Apesar de todos os belos rituais, das promessas de céu, ameaças de inferno e da sincera adoração de Deus, grande parte da casta sacerdotal das diferentes religiões transmite há milênios aos seus seguidores, nas entrelinhas, pelos seus atos e não por suas palavras, uma mensagem moralmente perigosa: “Faça o que eu digo, não faça o que eu faço”. Essa moral de cara dupla da velha religiosidade dogmática, que vive das aparências, não é mais capaz de manter-se de pé no século 21. As condições cármicas e históricas atuais já não admitem um divórcio hipócrita entre teoria e prática, ideal e vida, palavra e gesto. Se o ceticismo materialista e a falta de valores éticos ameaçam a convivência social, é porque as religiões têm falhas importantes.
 
A solução é o autoexame individual e coletivo. Cada um deve cuidar prioritariamente da sua própria purificação, porque ninguém está isento de erros. As organizações espiritualistas enfrentam os mesmos perigos da hipocrisia e da ilusão que corroem as religiões dogmáticas. Em certos meios “esotéricos”, por exemplo, encontra-se em cada esquina um “avatar”, um “alto iniciado” ou alguém que “canaliza” grandes seres e mestres divinos, ou conversa com eles. Há profetas ingênuos que aparentam uma santidade pessoal construída artificialmente. Na grande maioria dos casos, acreditam com sinceridade em suas próprias fantasias. A escritora Helena Blavatsky estava dolorosamente certa ao afirmar que, no caminho espiritual, é preciso manter sobretudo o bom senso.
 
Para Sigmund Freud, criador da psicanálise, o surgimento das religiões na história humana ocorreu de modo paralelo com a construção das sociedades organizadas. Deus surge na mente do homem como uma projeção cósmica da figura do pai. Exatamente como um pai, Deus castiga, impõe limites e – na medida do nosso bom comportamento e submissão filial – nos protege do mal e da destruição. Ao longo da história humana, quanto mais surgia a necessidade de organizar a sociedade, mais era necessário reprimir os instintos. Freud escreveu em O Futuro de Uma Ilusão que a figura de Deus surge na mente humana como um modo de impor ordem no mundo psicológico do homem primitivo:
 
“Por pouco que os homens sejam capazes de existir isoladamente, eles sentem, não obstante, como um pesado fardo os sacrifícios que a civilização espera deles para tornar possível a vida comunitária. A civilização, portanto, tem que ser defendida contra o indivíduo, e seus regulamentos, ordens e instituições visam a esta tarefa.” Para Freud, os homens “não são espontaneamente amantes do trabalho” e os argumentos racionais “não têm valia alguma contra suas paixões”. Assim, “toda civilização repousa sobre uma compulsão a trabalhar e uma renúncia ao instinto”. Entre os impulsos reprimidos estão o incesto, o canibalismo e a “ânsia de matar”.[2]
 
O psicanalista observa “com surpresa e preocupação” que “a maioria das pessoas obedece às proibições culturais nestes aspectos apenas sob pressão externa”. O mesmo ocorre com relação à conduta moral no sentido mais amplo: “a maioria das experiências que se tem da indignidade moral do homem ocorre nesta categoria (da ausência de repressão externa). Há incontáveis pessoas civilizadas que se recusam a cometer assassinato ou a cometer incesto, mas que não se negam a satisfazer sua avareza, seus impulsos agressivos ou desejos sexuais, e que não hesitam em prejudicar outras pessoas por meio da mentira e da calúnia, desde que possam permanecer impunes; isso, indubitavelmente, foi sempre assim através de muitas épocas da civilização.” [3]
 
Contemporâneo da ascensão do nazismo, Freud não alimenta ilusões em relação ao ser humano e olha com lucidez implacável os dramas neuróticos da nossa alma coletiva. Ele descreve o processo pelo qual uma cultura idealiza a si mesma, estimulando o orgulho narcisístico em seus integrantes como uma compensação pela repressão dos seus instintos animais elementares. Em casos extremos, o orgulho nacionalista ou racista pode levar à guerra e ao crime. E há casos brandos. Dizer que Deus é brasileiro ou que o futebol brasileiro deve ser sempre o melhor do mundo são manifestações simples e relativamente inofensivas desse tipo de narcisismo de grupo.
 
Vejamos alguns exemplos simples, que constatei no movimento espiritualista das últimas décadas. Em Porto Alegre muitos pensam que a capital gaúcha, por estar situada no paralelo trinta, será a capital espiritual do planeta, no futuro; em Curitiba, acredita-se que Curitiba, naturalmente, é uma cidade mágica, com um astral especial, e que comandará a passagem para a próxima civilização. Alguns habitantes da capital paulista tendem a pensar que sua cidade, por ser a maior do país, terá um papel fundamental nesse processo. Os espiritualistas cariocas, por sua vez, estão cientes da sua própria importância. Alguns habitantes da região de Brasília garantem que a região Centro Oeste, especialmente em torno da capital federal, será o berço da nova civilização. Em Nova Iorque, os habitantes daquela cidade alegam que ela é o verdadeiro centro do mundo, um tubo de ensaio para a formação da sociedade futura. Quem duvida que a Califórnia é o centro e berço do movimento da nova era? Os tibetanos, modestamente, creem que seu país é o mais sagrado e divino do planeta. Mas se você for à Índia, perceberá que os indianos têm uma serena consciência de que seu país é a origem e o criadouro de algumas das principais religiões humanas. Os espiritualistas ingleses levam muito a sério a importância dos seus próprios pontos de vista, e assim sucessivamente.
 
O fato central, esquecido por alguns, é que todos os lugares – e não apenas este ou aquele em especial – são, hoje, laboratórios e portais de transição para uma nova maneira de viver, mais solidária. A capital da nova era global – a “nova Jerusalém” – está em todas as partes, porque é na verdade uma nova dimensão da mente humana, uma nova maneira de funcionar, e não um lugar físico. A aurora da nova civilização ilumina a todos – mas o narcisismo compensatório encontra motivos para pensar que a nossa própria cidade é a melhor; nossa agrupação espiritualista é a grande portadora da verdade; nosso time de futebol tem que ser o campeão; nosso partido político é o único bom; nossas próprias opiniões e os livros que lemos são os mais importantes do mundo. Assim se fragmenta a verdade e se bloqueia a energia da fraternidade universal. Especialmente quando há nisso um sutil desprezo pelo ponto de vista dos outros.
 
Esse fenômeno narcisístico está ancorado em lugares profundos da alma humana. A civilização reprime os instintos do indivíduo usando como figura de poder um Deus paternal e autoritário que dita as regras. Aos seres humanos só resta obedecer. Fora daquela “verdade” oficial específica, única legítima, está o gigantesco e ameaçador “caos” que todos devem ignorar ou combater. O indivíduo se submete cegamente sem direito a questionar, mas, em troca, ganha o “direito” de considerar seu povo superior a todos os demais, sua religião a única verdadeira, e assim por diante. Disso têm surgido conflitos e sofrimentos inenarráveis, em quantidades indescritíveis.
 
Quando é visto ilusoriamente, o caminho espiritual oferece garantias tão sublimes quanto neuróticas. Só o discernimento permite perceber que na verdade a espiritualidade é o caminho da paz interior incondicional, e não do poder ou do prestígio externos; é o caminho do Ser, e não do ter; e no qual se procura o poder que nos faz parecer nada aos olhos dos outros. Sem medo da verdade, o polêmico Freud qualifica as grandes religiões dominantes no século 20 como velhas ilusões – “relíquias neuróticas” – pelas quais o ser humano criou uma figura divina nacionalista, que o protege do desconhecido legitimando a guerra, o egoísmo dos mais fortes e o sacrifício dos mais fracos. Assim, apesar da mensagem libertária de Jesus no Novo Testamento, na prática o cristianismo passou a ser uma religião imperial e dominadora – para citar um exemplo ocidental. A religião dogmática, para Freud, é uma maneira de externalizar a divindade, ou seja, de afirmar que ela não está dentro de nós, e que, sendo assim, podemos continuar agindo com maldade e irresponsavelmente, já que algo externo nos defenderá das consequências dos nossos próprios atos. “Compraremos” esse direito de proteção externa através da nossa submissão ao clero e da participação passiva nos rituais recomendados. Um exemplo claro desse lamentável equívoco é o caso do cristão desinformado que pensa que o sacrifício de Jesus na cruz é suficiente para salvá-lo, e que portanto ele não precisa, ou não pode (já que é um “mero pecador”), aplicar na prática da sua vida concreta o ensinamento do mestre Jesus.
 
Freud escreve:
 
“É duvidoso pensar que os homens em geral tenham sido mais felizes na época em que as doutrinas religiosas dispunham de uma influência irrestrita; mais morais, certamente eles não foram. Os sacerdotes, cujo dever era assegurar a obediência à religião, foram ao seu encontro neste aspecto. A bondade de Deus coloca freio em Sua própria Justiça. Alguém peca; faz depois um sacrifício ou se penitencia e fica livre para pecar de novo. (…) Assim concluíram: só Deus é forte e bom; o homem é fraco e pecador.” [4] Ao ler este parágrafo, anotei à margem com uma caneta: “Os rituais religiosos são, muitas vezes, uma exteriorização dos preceitos da sabedoria com o objetivo subconsciente de não ter de vivenciá-los na prática diária”.
 
Após uma longa reflexão, o psicanalista anuncia seu diagnóstico em relação às religiões convencionais e autoritárias:
 
“Assim, a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade; tal como a neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do relacionamento com o pai. Se for correta esta conceituação, o afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento; e nos encontramos exatamente nesta junção, no meio desta fase de desenvolvimento.” [5]   Isto é, o Deus-pai-autoritário corresponde à infância humana. Com nosso crescimento, nos afastamos dele e descobrimos maneiras adultas de ter acesso ao mundo divino. Freud escreveu que o Deus em que ele próprio acreditava, o Logos, a Razão, podia parecer pouco poderoso em meados do século 20, mas que desempenharia um papel preponderante no futuro. Ele escreveu, falando do verdadeiro intelecto ou inteligência espiritual:
 
“A voz do intelecto é suave, mas não descansa enquanto não encontra uma audiência. Finalmente, após uma incontável sucessão de reveses, obtém êxito. Este é um dos poucos pontos sobre os quais se pode ser otimista a respeito do futuro da humanidade e, em si mesmo, não é de pequena importância. E dele se podem derivar outras esperanças ainda. A primazia do intelecto jaz, é verdade, num futuro distante, mas é provável que ele não seja  infinitamente distante.” [6]
 
Consciente ou inconscientemente, Freud parece mencionar aqui as futuras raças humanas de que fala a filosofia esotérica, e que deverão ser guiadas por uma forte inteligência espiritual, ao invés da inteligência mental que caracterizava a humanidade do século 20. As humanidades futuras são descritas na obra “A Doutrina Secreta”, de H. P. Blavatsky. Em seguida, Sigmund Freud confessa que sua divindade preferida é a Razão, o Logos:
 
“O nosso deus, o Logos, talvez não seja um deus muito poderoso, e poderá ser capaz de efetuar apenas uma pequena parte do que seus predecessores prometeram. Se tivermos de reconhecer isto, aceitá-lo-emos com resignação.” [7]
 
É no mínimo significativo o fato de que Freud, considerado ateu, adota com seu enfoque psicanalítico o mesmo ponto de vista defendido por um grande mestre de sabedoria, o Mahatma Koothoomi, em uma carta escrita em 1882 para o jornalista inglês Alfred Sinnett, na época seu discípulo leigo. A carta – que causa polêmica até hoje nos meios teosóficos e espiritualistas – foi mandada para a Índia desde os Himalaias por processos físicos desconhecidos da ciência atual. Nela o instrutor afirma, com relação à religiosidade convencional e autoritária:
 
“Direi a você qual é a maior, a principal causa de cerca de dois terços dos males que perseguem a humanidade desde que esta causa entrou em ação. É a casta sacerdotal, o clero e as igrejas; é nestas ilusões que o homem vê como sagradas que ele deve procurar a fonte daquele sem-número de males, a grande maldição da humanidade que domina quase totalmente o gênero humano. A ignorância criou os deuses e a astúcia aproveitou a oportunidade. Veja a Índia, veja a cristandade, o islamismo, o judaísmo e o fetichismo. Foi a impostura dos cleros que fez com que estes Deuses passassem a ser tão terríveis para o homem; é a religião que o transforma no beato egoísta, no fanático que odeia toda a humanidade fora da sua própria seita, sem torná-lo em nada melhor ou mais moral por isso. É a crença em Deus e nos Deuses que faz de dois terços da humanidade escravos de um punhado daqueles que os enganam com o falso pretexto de salvá-los. O homem não está sempre pronto a cometer qualquer tipo de maldade se lhe disserem que seu Deus ou Deuses exigem o crime? O homem não é vítima voluntária de um Deus ilusório, escravo abjeto de seus ministros astuciosos?” [8]
 
Convém lembrar que em 1882 as religiões eram ainda piores do que são hoje. Uma boa parte do dogmatismo autoritário já é coisa do passado, embora haja muito por fazer. O instrutor prossegue na carta:
 
“Durante dois mil anos a Índia gemeu sob o peso das castas, com os brâmanes engordando só a si mesmos com o melhor da terra, e hoje os seguidores de Cristo e Maomé estão cortando as gargantas uns dos outros em nome – e para maior glória – dos seus respectivos mitos. Lembre que a soma da miséria humana nunca será diminuída até aquele dia em que a parte melhor da humanidade destruir em nome da verdade, da moralidade e da caridade universal, os altares dos seus falsos deuses.”
 
A semelhança com o ponto de vista freudiano é forte, e mostra que o fundador da psicanálise não só deu uma grande contribuição para libertar a alma humana dos seus condicionamentos, mas que sua visão do ser humano é semelhante, em muitos aspectos, à filosofia esotérica que inspira o movimento teosófico e grande parte do espiritualismo moderno. Assim como os raja-iogues inspiradores do movimento teosófico, Freud confiava no desenvolvimento da ciência e no alargamento dos seus horizontes, como meio para eliminar as causas do sofrimento humano.
 
A religião do futuro está nascendo hoje livre de dogmas e de obediência cega, porque se apoia no surgimento de um novo cidadão capaz de confiar na verdade, mesmo quando ela parece desagradável ou é “politicamente incômoda”. Esse cidadão possui uma dose suficiente de bom senso para viver na prática os antigos preceitos que recomendam ter uma “vida limpa, uma mente aberta e um coração puro”. Esse ser humano solidário, base de uma civilização mais durável, estabelece em seu mundo interno uma ligação consciente e crescente com a sabedoria imortal.
 
NOTAS:
 
[1] Veja, entre outros, o relato impressionante do caso de um famoso “Rinpoche” tibetano na Califórnia, totalmente destruído pelo alcoolismo e pela hipocrisia, no sério e bem documentado livro “Ao Encontro da Sombra”, compilado por Connie Zweig e Jeremiah Abrams, Ed. Cultrix, S. Paulo, capítulo 29. O livro traz uma reflexão indispensável para os espiritualistas do século 21.
 
[2] “O Futuro de Uma Ilusão”, Sigmund Freud, Ed. Imago, RJ, 1997, 87 pp. Ver pp. 11-18. Para conhecer melhor a visão freudiana sobre as religiões, leia também “Moisés e o Monoteísmo”, de Sigmund Freud, Imago Editora, 1997, RJ, 119 pp.
 
[3] “O Futuro de Uma Ilusão”, obra citada, pp.19-20.
 
[4] “O Futuro de Uma Ilusão”, obra citada, p. 60.
 
[5] “O Futuro de Uma Ilusão”, obra citada, p. 69.
 
[6] “O Futuro de Uma Ilusão”, obra citada, p. 83. Faço aqui uma pequena correção à edição brasileira da obra, seguindo a edição norte-americana com tradução de James Strachey. A edição brasileira afirma que o futuro é “infinitamente distante”, o que não faz sentido.
 
[7] “O Futuro de Uma Ilusão”, obra citada, p. 85.
 
[8] “Cartas dos Mahatmas Para A. P. Sinnett”, editadas por A. Trevor Barker, Editora Teosófica, Brasília, 2001. Ver carta número 88, vol. II, pp. 61-62. A respeito, veja também a Carta 30 no volume I, e a carta 90, no volume II.
 
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Três_Caminhos_Auxiliar
 
O texto “A Psicanálise das Religiões” reproduz o capítulo 11 da obra “Três Caminhos Para a Paz Interior”, de Carlos Cardoso Aveline; Editora Teosófica, Brasília, DF, 2002, 191 páginas.
 
Foi feita em 2015 a atualização a que se refere a nota [6]. O artigo está traduzido ao inglês e pode ser localizado em nossos websites associados sob o título de “The Psychoanalysis of Religions”.
 
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