Um Sonho Antigo Pode Florescer no Século 21
Carlos Cardoso Aveline
Como será a religiosidade do futuro? E qual será o papel do país em que vivemos no processo do seu surgimento?
Não há uma resposta pronta para a segunda pergunta, mas o tema é oportuno. Deve ser investigado e debatido pelos pioneiros.
Em relação à primeira questão, a teosofia clássica ensina que a religião do futuro será planetária. Ela não terá dogmas ou rituais. Será desburocratizada. Estará aberta à livre expressão individual e isenta de sacerdotes assalariados.
A religião do futuro será uma religião-filosofia. Sem donos ou papas, ela respeitará a diversidade cultural dos povos e será uma religião da natureza. Levando em conta que a vida está dinamicamente presente em tudo o que existe, ela ensinará a unidade e a harmonia entre o espírito e a matéria. Ela também ensinará que a consciência dirige a matéria e não o contrário. A base desta religião será a compreensão prática do fato da fraternidade universal.
Nas obras de Helena Blavatsky e nas Cartas dos Mahatmas encontramos uma formulação moderna e abrangente da religião do futuro. Pouco antes de Blavatsky, Eliphas Levi ajudou a preparar o seu enunciado. E também é verdade que as bases da religião do futuro vêm sendo construídas há milênios. A ideia da cidadania planetária era proposta por Pitágoras e Demócrito na Grécia antiga, e defendida por Lúcio Sêneca no império romano. Demócrito afirmava que a pátria da boa alma é todo o universo.[1] O imperador romano Marco Aurélio agia conforme a religião do futuro. E muito antes de Marco Aurélio, o imperador Ashoka fez o mesmo na Índia.
À medida que passa o tempo, o sonho se torna mais concreto. O iluminismo do final do século 18 foi um ponto forte do processo. Em 1795, Immanuel Kant propôs a religião do futuro ao escrever o seu tratado sobre a paz perpétua. Este foi o primeiro rascunho e a concepção inicial do que é hoje a Organização das Nações Unidas.[2]
Karl Dietrich Krause, o filósofo kantiano alemão, aprofundou a proposta da fraternidade universal. Inúmeros pensadores e ativistas trabalharam nesta linha ao longo do tempo; mas, para florescer, a religião do futuro ainda terá que derrubar o muro separatista dos dogmas sustentados pelas igrejas e seitas das diversas religiões. Será preciso fazer isso de modo fraterno. As chaves para o cumprimento desta tarefa foram estabelecidas no século 18.
O livro “História da Civilização Ocidental”, de Edward McNall Burns [3], descreve da seguinte maneira o Deísmo, uma das principais correntes filosóficas do iluminismo:
“A mais notável filosofia religiosa [do Iluminismo] foi o deísmo. Parece que quem deu origem a esta filosofia foi um inglês de nome Lord Herbert of Cherbury (1583-1648). No século XVIII, as doutrinas deístas foram propagadas por homens como Voltaire, Diderot e Rousseau, na França; Alexander Pope, Lord Bolingbroke e Lord Shaftesbury, na Inglaterra; e Thomas Paine, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, na América. Não satisfeitos em condenar os elementos irracionais da religião, os deístas chegaram à denúncia de qualquer forma de fé organizada. O cristianismo não foi mais poupado que as outras religiões. As religiões instituídas eram estigmatizadas como instrumentos de exploração, que velhacos espertos tinham inventado para possibilitar-lhes a manipulação das massas ignorantes. Voltaire dizia: ‘O primeiro teólogo foi o primeiro espertalhão que encontrou o primeiro tolo’.” [4]
Voltaire é conhecido por sua maneira irreverente de escrever. Os deístas acreditavam em “Deus”. Porém o seu conceito de Deus correspondia ao que a teosofia universal chama de Lei Universal ou Princípio Supremo. Trata-se de algo impessoal, destituído de atributos, e sobre o qual é inútil especular verbalmente ou com o raciocínio convencional do hemisfério cerebral esquerdo. Este mesmo princípio abstrato é chamado de Tao no primeiro verso do clássico chinês “Tao Te King”.
Edward Burns prossegue:
“Os objetivos dos deístas não eram porém todos destrutivos. Não se interessavam somente em destruir o cristianismo, mas em construir uma religião mais simples e mais natural para substituí-la. Os dogmas fundamentais dessa nova religião eram mais ou menos os que se seguem: 1) Há um Deus que criou o universo e ordenou as leis naturais que o controlam; 2) Deus não intervém nos negócios do homem, neste mundo: ele não é um Deus caprichoso, como o deus dos cristãos e judeus, que dá ‘uma oportunidade para o bem e outra para o mal’, segundo seus caprichos momentâneos; 3) Oração, sacramento e ritual são meros absurdos inúteis; Deus não pode ser enganado ou subornado para violar as leis naturais em benefício dos indivíduos particulares; o homem é dotado de livre arbítrio para escolher entre o bem e o mal; não há predestinação para alguns serem salvos e outros serem condenados, mas as recompensas e as punições (….) são determinadas unicamente pela conduta terrena do indivíduo.”
O deísmo defendido por Thomas Paine, Benjamin Franklin, Thomas Jefferson, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau propunha claramente uma religião universal. Edward Burns escreveu:
“…. O deísmo era bastante diferente do supernaturalismo racionalista. Enquanto os expoentes deste último ainda adotavam a crença na revelação, em milagres e na racionalidade do cristianismo, os deístas desfizeram-se de tudo que não concordava com suas ideias de religião natural. Afirmavam que todo mortal inteligente que seguisse a orientação da razão chegaria por fim a acreditar num Deus criador, em futuras recompensas e punições e em leis naturais e morais. Desse modo, o deísmo era tido como uma religião universal aplicável a todas as condições e climas e passível de ser descoberta tanto pelo sábio chinês como pelo nativo astuto da floresta virgem. O cristianismo era desprezado como não sendo melhor que o islamismo e, mesmo, como sendo um pouco pior, dada a malícia do seu clero e sua maior carga de dogmas místicos. Por outro lado, muitos dos deístas dedicavam profunda admiração ao nobre caráter de Jesus e alguns até tentaram provar que também ele era um deísta. Voltaire pensava ser um insulto chamar Jesus de cristão.”
A proposta de uma religião da ética universal foi enriquecida ao longo dos séculos 19 e 20. Albert Einstein, Teillard de Chardin, Mahatma Gandhi e inúmeros cidadãos de boa vontade ajudaram a prepará-la.
Quanto falta para que seja concluída a tarefa da sua construção? Não sabemos exatamente, mas segundo Helena Blavatsky é possível que o sonho não tenha que esperar até o século 22 para ser realizado. Cabe a cada um fazer o melhor no instante presente. No tempo certo, quando a humanidade merecer, nascerá a civilização da fraternidade.
NOTAS:
[1] “Los Filósofos Presocráticos”, Leucipo y Demócrito, Planeta deAgostini, Editorial Gredós, España, 1998, 308 pp., ver p. 247.
[2] “À Paz Perpétua”, Immanuel Kant, L & PM Pocket, Porto Alegre, 2008, 85 pp.
[3] “História da Civilização Ocidental”, de Edward McNall Burns, Editora Globo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, São Paulo, 1948, 958 pp., ver pp. 552-553.
[4] “Dicionário Filosófico”, Voltaire, verbete “Religião”. (Nota de Edward McNall Burns)
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O texto acima foi publicado inicialmente na edição de maio de 2009 de “O Teosofista”, sem indicação do nome do autor.
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A obra tem 255 páginas e foi publicada em outubro de 2013 por “The Aquarian Theosophist”. O volume pode ser comprado através de Amazon Books.
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