O Que Mais Me Aborrece
É a Pobreza de Pensamento
É a Pobreza de Pensamento
Lima Barreto
Lima Barreto (1881-1922) e a capa de uma das suas obras
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Nota Editorial:
Reproduzimos a seguir trechos
da crônica “Sobre o Carnaval”, de
Lima Barreto. Com seu estilo irônico,
Lima Barreto é um dos maiores nomes
da literatura brasileira de todos os tempos.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Atribuo em parte ao meu avanço no tempo, se uma tal coisa se pode dizer, o aborrecimento que me causa o Carnaval atualmente.
Nunca fui carnavalesco, mas, como todo melancólico e contemplativo, gosto do ruído e da multidão e não fugia a ele.
O isolamento faz-me mal à alma e ao pensamento. Mergulho no barulho dos outros, deixo de pensar em mim e nas fantasmagorias que eu mesmo criei para o meu padecer.
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Se tivesse herdado uma grande fortuna e até hoje a tivesse conservado, havia de marcar, nos dias presentes, a minha vida e a minha estada, em várias partes do mundo, pelas célebres festas que, nelas, determinam grandes aglomerações humanas. Iria a Benares, na Índia, quando fosse a época das peregrinações dos bramanistas ao Ganges sagrado e do sagrado banho no rio divino; iria a Meca, no auge das visitas dos muçulmanos ao túmulo do profeta; iria a todas as festas e cerimônias dessa natureza; mas, atualmente, fugiria do Carnaval do Rio de Janeiro, que não se pode agora assistir em são e perfeito juízo. Vou dizer o motivo.
Não partilho da opinião da polícia, nem muito menos tenho os melindres pudibundos da “Liga” do Sr. Peixoto Fortuna [1]; o que me aborrece mais no atual Carnaval é a conclusão a que fatalmente chego ao ouvir as suas cantigas, sambas, fados, etc., ao ouvir toda essa poética popular e espontânea, de não possuir o nosso povo, a nossa massa anônima, nenhuma inteligência e de faltar-lhe por completo o senso comum. Mete horror semelhante pensamento.
O ponto de vista de imoralidade e chulice pouco me preocupa: o que me preocupa é o intelectual e artístico, tanto mais que, se este, segundo as suas forças, fosse obedecido pelos nossos bardos carnavalescos, certamente a imoralidade e a chulice ficariam atenuadas e disfarçadas. Tal coisa, porém, não se dá; e na impossibilidade devido à polícia de entoarem coplas francamente pornográficas e porcas, não têm os rapsodos carnavalescos outro recurso senão lançarem mão de estribilhos e cantigas sem nexo algum. Uma tal pobreza de pensamento no nosso povo causa a quem medita piedade, tristeza e aborrecimento. Por isso fugi ao Carnaval e ele agora me é indiferente.
Conheço a poesia dos alienados [2], tenho até em meu poder exemplares dela; mas, se compararmos as suas produções com as que são cantadas nos nossos três dias de Momo, toda a vantagem de concatenação de ideias, de sentido e mesmo de propriamente poesia, vai para a banda dos dementados.
Seria tolice exigir dos vates dos cordões e ranchos, coisas impecáveis em qualquer sentido. O que, porém, podiam mostrar, é que eram capazes de não desmentir o estro [3] dos nossos humildes cantores roceiros do “desafio”, que são verdadeiramente povo; entretanto, raramente caem com as suas quadras no contrassenso ou, melhor, no sem-senso, agravado do palavreado oco e idiota da atual musa carnavalesca.
Os jornais, ou, antes: um jornal observou mais ou menos isto que eu estou aqui dizendo; mas sem confessar que a culpa é deles, pois animam a vaidade de tais poetas, publicando-lhes, sem exame, a sua enxurrada de vocábulos que não querem dizer nada. Estou certo de que, se para a sua publicação e competente elogio os [jornais] cotidianos exigissem mais alguma coisa que não uma trapalhada de palavras, melhor eles fariam.
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Fazendo estas despretensiosas considerações, não me move nenhuma espécie de antipatia pelo folgar do povo; mas, pedir unicamente a ele próprio que nessa sua folgança, neste poetar da sua alma alanceada, quando procura, nestes três dias, esquecer o seu penar e a sua dor, no riso, no gargalhar e no estonteamento, pusessem os seus trovadores mais gosto, mais sentido, compusessem mais cantares que pudessem ser entendidos, coisa que não lhes é impossível, pois todos conhecemos as poesias roceiras, as quadras populares, quase sempre expressivas e denunciando [4] verdadeira poesia.
NOTAS:
[1] Liga pela Moralidade. (Nota de Lima Barreto)
[2] Alienados, isto é, doentes mentais graves. (CCA)
[3] Estro: engenho poético, imaginação criadora, talento. (CCA)
[4] Denunciando, isto é, revelando, expressando. (CCA)
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Os trechos acima estão nas pp. 210 a 214 da obra “Feiras e Mafuás”, de Lima Barreto, Editora Mérito, S.A., SP e RJ, 1953, 312 pp.
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Veja nos websites associados os artigos “Jesus Cristo e o Carnaval”, “O Carnaval Segundo a Teosofia” e “Abandonando a Infantilidade Carnavalesca”.
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Sobre o crescimento interior e a transformação pessoal no século 21, leia a obra “O Poder da Sabedoria”, de Carlos Cardoso Aveline.
O livro foi publicado pela Editora Teosófica, de Brasília, tem 189 páginas divididas por 20 capítulos e inclui uma série de exercícios práticos. Está na terceira edição.
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