Você Sabe Viver no Mundo da Vontade?
 
 
Jean des Vignes Rouges
 
 
 
A figura do herói é um símbolo e um espelho do eu superior
 
 
 
Você tem pouca força de vontade? Pense num possível distúrbio em suas glândulas endócrinas. Vá consultar um médico competente. Talvez ele lhe diga que tipo de hormônios você precisa absorver para recuperar a “orquestra endócrina” da qual dependem em grande parte o seu ardor, seu estado de espírito, sua coragem, a sua paciência, enfim, todas as suas virtudes.
 
Mas, em relação a este tipo de problema, cuidado com as “porretadas” radicais dadas a um organismo desgastado! Qualquer farmacêutico lhe venderá produtos para a tireóide, as suprarrenais, as glândulas sexuais, etc., que, uma vez absorvidos, farão maravilhas por alguns dias; mas usarão as reservas profundas do corpo. Este não é um resultado desejável.
 
A excitação das glândulas endócrinas pode ser obtida – até certo ponto – pela ativação de determinados estados psicológicos, especialmente emoções. Portanto, cultive em você certas formas de exaltação. A leitura de um livro que o entusiasme pode substituir os comprimidos.
 
O Mundo da Vontade
 
Você sabe viver “no mundo da vontade”?
 
Mas, antes de mais nada, o que significa esta expressão? Aqui está: você ouve no rádio notícias sobre abastecimento; todos os seus impulsos alimentares, utilitários e práticos são despertados, você pensa nas batatas, na ração para animais domésticos e assim por diante, você está “no mundo das coisas úteis”.
 
Depois você gira o botão do rádio e soa uma música heroica. Imediatamente você deixa de raciocinar como antes. Surge dentro de você a nostalgia. As suas noções de valor e de verdade mudam. No sentimento embriagador da música, a sua personalidade se transformou. Você está agora “no mundo da música heróica”.
 
Existem, assim, “mundos” de amor, de medo, de admiração, de obediência, e assim sucessivamente, nos quais as circunstâncias, o acaso, as suas predisposições o fazem viver durante períodos de tempo mais ou menos longos. Certos indivíduos, dos quais se diz que têm uma mentalidade singular, ou uma única paixão, vivem toda a sua vida num mundo particular. Os artistas, por exemplo.
 
Bem, você trata de viver “no mundo da vontade”. Isso consiste essencialmente em sentir-se banhado por uma atmosfera espiritual especial que transfigura todas as coisas. O estado de vontade já não parece mais um avanço brutal contra uma presa. Não é mais uma ação de sequestro, ou uma “ajuda fraterna”, não; é a sensação de um fluxo regular e poderoso de ideias e sentimentos que recebemos como uma força que nos torna mais nobres.
 
O homem que tem esse entusiasmo fica livre de formas baixas de pensar e sentir. As palavras responsabilidade, dignidade, coragem, fervor, etc., têm para ele um sentido novo, de ressonâncias magníficas; ele percebe a beleza sobrenatural delas. Assim como quem ama profundamente a música, “o homem que quer” sente-se invadido por uma estranha nostalgia; ele sonha com aventuras onde sua vontade abriria as asas sobre a imensidão de possibilidades.
 
E, no entanto, exatamente porque ele “quer”, ele rejeita sonhos insensatos. A sua volúpia de querer encontra um limite na razão, ou melhor; o homem de vontade se mantém em harmonia com a vontade geral das coisas. [1]
 
Ah, concordo eu, este “mundo da vontade”, no qual eu convido você a entrar, é um estado de espírito complexo, quase indefinível. Mas se você conseguir conhecê-lo de modo direto, notará uma súbita elevação de toda a sua personalidade. Os seus gostos, as suas preferências, as suas maneiras de pensar, de sentir, a sua escala de valores enfim, serão alterados. Não há mais mesquinharia em você. Não há mais preocupações sórdidas, mas sim um belo entusiasmo que iluminará a sua alma toda e as coisas ao seu redor. Você vai saber finalmente o que é uma ação livre, a ação que participa da obra divina através de uma criação que ocorre no absoluto.
 
“Isso tudo é poesia” – você pode pensar.
 
Isso mesmo. É lirismo. Mas é justamente através desse lirismo que a sua emoção de querer será sublimada, purificada e ganhará um aspecto pessoal. Graças a esta expansão de consciência, você deixará de ser uma máquina de vontade para se tornar um homem consciente da plenitude da sua força interior, força        que  você percebe com dignidade, meditativamente, com profundo respeito, e vê como um princípio sagrado.
 
Deste modo você avançará pela vida como um daqueles personagens em quem sentimos que existe uma autoridade misteriosa. Quem o conhecer pensará: “Não sei o que há nele, mas só de ouvi-lo falar, e até mesmo de vê-lo, tenho vontade de concordar com ele”. Assim as pessoas adivinharão, com maior ou menor clareza, que você vive “no mundo da vontade”.
 
O Mistério da Transfusão Psicológica
 
“Jamais conseguirei ter uma vontade forte!”
 
Se esse pensamento o oprime, evoque com firmeza a imagem de um herói que você admira, e pare de pensar em suas derrotas. A imagem escolhida mudará o rumo das ideias. Você não ficará mais contemplando a si mesmo, com suas misérias e suas mesquinharias, mas contemplará um homem poderoso com o qual você em seguida se identificará, devido ao efeito das leis da imitação.
 
Para aproveitar ao máximo a influência de um exemplo elevado, tente reviver os estados de alma mais internos do herói. Você precisa sentir simpatia por ele, até mesmo amizade e afeto, para sentir que participa da sua vida interior numa espécie de familiaridade diária. Leia portanto a biografia do homem cujo exemplo você quer seguir. Experimente como se fossem suas as vitórias e as derrotas dele, lute contra as dificuldades que ele encontrou, fique feliz com os seus sucessos. 
 
A transfusão psicológica acabará por acontecer. Principalmente se você tiver a sabedoria de convencer a si mesmo de que o seu objetivo não é alcançar uma glória idêntica à do seu herói, mas simplesmente extrair, do exemplo dele, a energia necessária para cumprir o seu próprio destino.
 
Recomendação importante: escolha como exemplo um homem que realmente vive – ou que viveu – e não um herói de cinema.
 
Adotar Princípios de Conduta
 
“Ah, da minha parte”, diz um tolo desinformado, “eu não tenho princípios fixos, é muito complicado. Eu vou de acordo com as circunstâncias.”
 
Vai, sim, mas vai da estupidez à incompetência, dos erros às infrações, e das gafes aos deslizes.
 
Não o imite. Siga os seus próprios princípios. Seguir princípios é ter compreendido, por mérito próprio, que a experiência humana representa um capital precioso, e que os irresponsáveis não tiram proveito dela.
 
Seja numa questão de conduta moral, de comportamento prático, de como lidar com as pessoas, ou de conhecimento a ser adquirido, há sempre um conjunto de regras, leis, axiomas e teorias que vão esclarecer você e facilitar a sua ação. Faça um esforço para conhecer estes princípios. Faça uma compilação deles. Você precisará deles com frequência.
 
Ah! Sem dúvida o “homem de princípios” parece às vezes um pouco rígido. Acontece até que os seus princípios dão a ele um ar de “desastrado e confuso”. Em cada caso concreto, ele procura na memória a regra que deve ser aplicada, e às vezes não a encontra. Então fica paralisado, perplexo.
 
Mas essa situação é apenas uma falha do espírito de iniciativa, que deve ser superada através de um treinamento adequado. Permanece sendo verdade que um princípio conhecido, admitido, aprovado e amado de maneira antecipada oferece uma base sólida para toda atividade séria.
 
As mulheres – não todas, felizmente – declaram com naturalidade que têm horror a princípios e, portanto, preferem confiar em suas intuições e não em teorias estabelecidas antecipadamente; elas obedecem assim ao seu espírito de contradição, ao seu gosto por fugir da lei e, sobretudo, suas exigências eternas e dissimuladas de independência. Segundo essas mulheres, o “coração” é suficiente para iluminar a conduta… E além disso, “fica mais elegante” parecer que se obedece apenas à sua própria fantasia!  
 
No entanto, quando as circunstâncias familiares, as condições sociais ou outras situações obrigam essas mesmas mulheres a exercer um comando, uma atividade séria na família, no comércio, na indústria, ou no trabalho, vemos que elas subitamente se transformam em “mulheres de princípios” raivosas e incapazes de tolerar qualquer violação a uma regra. Quando são promovidas a uma posição mais elevada, essas matronas se tornam “inflexíveis na administração da justiça”. [2]
 
Evite, portanto, este caminho equivocado. Adote bons princípios desde já e coloque-os em prática.
 
Tome “resoluções”, isto é, decisões às quais você dará uma dignidade especial, uma força obrigatória quase sagrada.
 
“Eu tomei esta decisão…”. Deixe que essas palavras ressoem em sua consciência como uma promessa emocionante, cujos ecos se prolongam até as regiões mais longínquas do seu subconsciente. Se, previamente, você tomou a precaução de justificar a sua resolução com razões sérias e bem deliberadas, você se sentirá plenamente comprometido e ligado à decisão por um juramento solene. Assim você vai mantê-lo e irá garantir a coerência em sua vida.
 
No entanto, há pessoas que tomam decisões a cada momento, simplesmente para dar a si mesmas a ilusão de construir o ser humano em que querem se transformar. E como elas têm uma visão exagerada das suas próprias forças, basta um pequeno vento qualquer para levar para longe as suas promessas, de maneira que só resta a estas pessoas “movidas pelo vento”, a humilhação de ter formulado uma vontade em vão.
 
Uma Vitória Sobre Si Mesmo
 
Você sente dentro de você a vibração da “massa libidinosa”. Ela é feita de inúmeras aspirações a ter satisfação e experimentar prazer. Ganância, luxúria, avidez, ódio, fome, ciúme, vingança, crueldade. Que nomes medonhos! Que ninhada de víboras!
 
Não fique desanimado: o seu dever, como homem, é precisamente apoderar-se destas energias elementares e treiná-las, encantá-las, sublimá-las, para constituir a sua vontade.
 
Você acaba de conquistar uma vitória sobre si mesmo. Não perca muito tempo com a euforia do triunfo. Não abandone o esforço. Aproveite o seu êxito e volte ao ataque, para conquistar mais uma qualidade.
 
O espírito quer criar, o corpo quer ter satisfação. Encontrar um equilíbrio harmonioso é um dos segredos da vontade forte.
 
Não despreze demais o corpo, é o corpo que abastece o espírito.
 
Não pense que tudo o que você faz com prazer está contaminado pelo pecado. Há prazeres que são úteis e estão permitidos.
 
Reprima às vezes aquele furor da vontade que procura por toda parte – no corpo – escravos a serem submetidos.
 
Atenção! Não se deixe guiar pelas suas repugnâncias. Mesmo quando elas se expressam de forma violenta, examine se não são pretextos dissimulados para você se vingar de alguma decepção, de algum fracasso ou humilhação.
 
Os seus pais, seus amigos, seus vizinhos, mudam de atitude diante de você. Amargamente você percebe que eles o respeitam e admiram menos, que gostam menos de você. Antes de acusá-los de inconstância de sentimentos, pergunte a si mesmo se não foi a sua própria vontade que mudou. Talvez você já não tenha mais a capacidade de impor uma imagem de si que inspire amor, respeito e admiração.
 
Além disso, é possível que os “outros” o tenham “deixado de lado” porque você parou de atribuir a eles os sentimentos que gostaria que tivessem, fato que os induzia a ter tais sentimentos.   
 
Devolva a eles a convicção de que eles gostam de você, elogiando ou agradecendo a devoção, a gentileza e a lealdade deles.
 
Esteja Presente no que Você Faz
 
Você está em busca de uma proeza de força de vontade que possa ser realizada. Pois então tente considerar aqueles que o fazem sofrer como simples irresponsáveis. Muitas vezes é isso o que ocorre de fato, mas nós temos tanta vontade de vingar-nos de alguém que acabamos até por bater com raiva em um móvel qualquer em que esbarramos por distração. 
 
Por outro lado, esse instinto de vingança cumpre um papel social e educativo indispensável, porque se todos os irresponsáveis soubessem que serão tratados como não-responsáveis, e que escaparão do castigo, em pouco tempo aqueles que praticam o perdão seriam exterminados.
 
“No amor, a verdadeira coragem é a fuga!” Este pensamento de Napoleão é recomendado em muitas ocasiões, por grande número de moralistas.
 
Seguramente esta é com frequência uma boa tática. De que adianta expor-se sem necessidade a uma tentação que pode tornar necessário um grande esforço para reprimir? É sábio evitar este desperdício de energia prevendo as situações que exigiriam intensamente a ruptura das regras de conduta que nós mesmos adotamos. É preciso, portanto, saber não dar atenção às coisas que nós decidimos ignorar ou descartar.
 
Mas não transforme este excelente procedimento tático num princípio geral, caso contrário você passará a vida em uma fuga perpétua. Então, tenha coragem, às vezes, de enfrentar a tentação. Esse tipo de crise é salutar. Ela protege contra a morte lenta por inação. Porém só parta para o assalto, como na guerra, se tiver boas armas, depois de ter passado por um treinamento sério e, sobretudo, tendo no coração a certeza da vitória.
 
Nada de contar vantagem! Não tente provar a si mesmo que tem força de vontade “trocando os pés pelas mãos” e abrindo fogo em todas as direções.
 
Dedique-se à tarefa que você escolheu, e a nada mais do que ela. “Esteja presente no que você faz” – este é um dos lemas do homem de ação.
 
NOTAS:
 
[1] A vontade geral das coisas é o rumo central do Carma, e a sua expressão é a Lei Universal. É preciso sabedoria para estar em harmonia com a Lei, ou com a vontade geral das coisas. O homem sensato faz com que a sua vontade individual seja parte da vontade ou Lei universal, que age sem pressa na direção da felicidade de todos os seres. (CCA)
 
[2] É evidente que este problema de “rebeldia” leva à derrota tanto homens quanto mulheres. (CCA)
 
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O texto “Conselhos – Aspectos Diversos da Vontade” foi publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas no dia 25 de janeiro de 2025. Trata-se de uma tradução da obra «Dictionnaire de la Volonté», de Jean des Vignes Rouges, Éditions J. Oliven, Paris, 320 pp., 1945, ver pp. 62-67. A tradução é de Carlos Cardoso Aveline. Artigo original: “Conseils – Aspects Divers de la Volonté”.
 
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Jean des Vignes Rouges é o nome literário do militar e pensador francês Jean Taboureau (1879-1970).
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
 
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