Um Capítulo da Obra “Conversas na Biblioteca”
Carlos Cardoso Aveline
À direita, Helena Blavatsky
00000000000000000000000000000000000
Nota Editorial:
Reproduzimos a seguir o capítulo 16
do livro “Conversas na Biblioteca,
um diálogo de 25 séculos”. A obra
tem 170 páginas e foi publicada pela
Editora da Universidade de Blumenau, a
Edifurb, em 2007. A ortografia foi atualizada.
000000000000000000000000000000000000000000
Helena Blavatsky e a Sabedoria Divina
Em pleno século 19, uma mulher desafiou as diferentes religiões em seus aspectos dogmáticos e corporativos, mostrando que todas elas são imperfeitas e nenhuma possui contato exclusivo com o mundo divino. Mas a escritora russa-ucraniana Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891) também mostrou que cada grande religião tem, em sua essência, contato interior com a sabedoria eterna e universal que é patrimônio comum de toda a humanidade.
Retomando o termo criado por Amônio Sacas de Alexandria nos séculos dois e três da era cristã, Helena usou a palavra “teosofia” para referir-se a essa sabedoria primordial, e fundou, em Nova Iorque em 1875, o movimento esotérico moderno.
Ela também desafiou os dogmas científicos da época, e retomou a tradição clássica segundo a qual a religião, a ciência e a filosofia devem ser reconhecidas como inseparáveis em um universo em que cada coisa tem vida e movimento em seu interior e está ligada a todas as outras partes do cosmo.
Sensitiva, durante alguns anos promoveu fenômenos parapsicológicos para mostrar em um plano prático que o universo não tem apenas três dimensões e que a vida é maior do que o mundo dos cinco sentidos. Trabalhando em contato com raja-iogues dos Himalaias – sábios que operam em um plano intuitivo da consciência – Blavatsky trabalhou pela compreensão não-dogmática de que todos os seres humanos são irmãos, sem distinção de raça, credo, sexo, ideologia ou condição social.
Em troca, foi desprezada, chamada de doida, charlatã e mentirosa. Também foi incompreendida e atacada dentro do próprio movimento teosófico que ela fundou.
Em 1885, no auge de uma campanha clerical contra suas ideias universalistas que desbancavam crenças dogmáticas, Helena Blavatsky foi alvo de uma investigação por parte da Society for Psychical Research (Sociedade de Pesquisas Psíquicas, SPP), de Londres, e qualificada como um caso “fascinante” de fraude.
Quase cem anos depois do “processo”, levando em conta certos estudos e evidências, a SPP contratou um expert em fraudes e falsificações, Vernon Harrison, para reexaminar a “condenação” de H.P. Blavatsky.
A investigação técnica reverteu diametralmente a posição da SPP, e Harrison escreveu um livro com suas conclusões. Ele testemunhou que, realmente, houve fraude; não da parte de Blavatsky, mas dos seus acusadores. As provas contra Blavatsky é que foram forjadas. Em 1986, a Society for Psychical Research (SPR) de Londres fez uma autocrítica pública, integral e sem meias palavras. Embora tardia, a reparação serviu para restabelecer a verdade. [1] Os mais desinformados, no entanto, ainda hoje tratam Blavatsky com base nas calúnias e preconceitos do século 19.
Menos de 150 anos depois da sua morte, está documentado o fato de que a vida e o trabalho de Helena P. Blavatsky causaram um forte impacto positivo na história do pensamento humano. Porém, muito do que ela escreveu e publicou em vida ainda está por ser compreendido e decodificado mais claramente. Há previsões segundo as quais a importância de Blavatsky será melhor percebida no futuro. [2]
HPB escreveu incansavelmente sua vida toda – cartas, artigos e livros. A publicação dos seus artigos e textos curtos, os “Escritos Reunidos” (Collected Writings) só terminou na década de 1980 e ocupou 15 volumes. Suas obras ocupam no total quase 30 volumes, com destaque para “A Doutrina Secreta”, “A Chave Para a Teosofia”, “Ísis Sem Véu” e “A Voz do Silêncio”. [A seguir, um diálogo com o conjunto da obra de HPB.]
1) O que significa a palavra Teosofia?
R: Significa “sabedoria divina”, ou sabedoria dos deuses, assim como a teogonia é a genealogia dos deuses. A palavra theos significa “um deus” em grego, um dos seres divinos – certamente não “Deus” no sentido atribuído em nossos dias ao termo. Portanto, não é “sabedoria de Deus”, como traduzido por alguns, mas sabedoria divina, a sabedoria possuída pelos deuses.
2) Qual é a origem do nome?
R: Ele nos foi transmitido pelos filósofos de Alexandria, conhecidos como os amigos da verdade, filaleteus, de filo, amigo, e aleteia, verdade. O nome Teosofia data do terceiro século de nossa era e foi introduzido por Amônio Sacas e seus discípulos, os quais iniciaram o sistema teosófico eclético.
3) O objetivo dos teosofistas de Alexandria era o mesmo dos teosofistas modernos: criar uma percepção e um espaço de vivência da fraternidade universal de todos os seres humanos, com base em uma ética comum e no reconhecimento de certas verdades eternas presentes nas diferentes filosofias, religiões e ciências. Mas a meta não é fácil e não me parece possível alcançá-la sem autoconhecimento. Como podemos educar-nos sem dogmas, trocando desejos menores pela busca da paz e da verdade?
R: Quando o desejo busca o que é puramente abstrato, quando o desejo perdeu todo traço ou tonalidade de “eu”, então ele tornou-se puro.
O primeiro passo para essa pureza é eliminar o desejo pelas coisas materiais, já que elas só podem ser apreciadas pela personalidade separada. O segundo passo é deixar de desejar para si até mesmo coisas abstratas como poder, conhecimento, amor, felicidade ou fama; porque, afinal de contas, elas são todas egoístas.
A própria vida ensina essas lições; porque todos esses objetos de desejos tornam-se frutos do Mar Morto no momento em que são alcançados. Isto nós aprendemos por experiência própria. A percepção intuitiva captura a verdade positiva de que a satisfação é alcançável só no infinito; a vontade torna essa convicção um fato real na consciência, até que, afinal, todo desejo está centrado no que é Eterno.
4) O que é preciso fazer, então, para alcançar o verdadeiro autoconhecimento?
R: A primeira condição para obter autoconhecimento é tornar-nos profundamente conscientes da nossa ignorância; sentir com cada fibra do nosso coração que somos incessantemente autoiludidos.
O segundo requisito é a convicção ainda mais profunda de que tal conhecimento – um conhecimento seguro e intuitivo – pode ser obtido pelo esforço.
O terceiro e mais importante é uma determinação indômita de obter e enfrentar esse conhecimento. O autoconhecimento desse tipo não pode ser alcançado através do que normalmente se chama de “autoanálise”. Ele não é obtido pelo raciocínio ou por qualquer processo cerebral, porque ele é o despertar da consciência da natureza divina no ser humano.
Obter esse conhecimento é uma realização maior do que ter domínio sobre os elementos da natureza ou conhecer o futuro.
5) O que você está descrevendo é inseparável do despertar da intuição. Como se pode desenvolver a verdadeira intuição?
R: Em primeiro lugar, exercitando-a. E, em segundo lugar, não usando-a para propósitos meramente pessoais. Exercitá-la significa que ela deve ser seguida através de erros e derrotas, até que, a partir das tentativas sinceras de usá-la, ela adquire força própria. Isso não significa que podemos fazer coisas erradas e deixar os resultados de lado, mas quer dizer que, estabelecendo nossa consciência sobre uma base correta pela adoção da regra de ouro [3] , nós abrimos espaço para a intuição e aumentamos a sua força.
Inevitavelmente, no início cometeremos erros, mas se formos sinceros em seguida a intuição brilhará com mais clareza e não errará. Deveríamos acrescentar o estudo das obras daqueles que trilharam esse caminho no passado e descobriram o que é real e o que não é. Eles dizem que o Eu Superior [4] é a única realidade. O cérebro deve ter acesso a visões mais amplas da vida (…).
6) A filosofia esotérica formulada por você ensina que a evolução da humanidade faz parte da evolução do planeta, e que tudo no cosmo (assim como na vida de cada indivíduo) obedece a ciclos, com períodos regulares de atividade e descanso, de atividade externa e recolhimento interior. Tanto as pessoas como os universos reencarnam: tudo é cíclico. Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se recicla. E na obra “A Doutrina Secreta”, publicada em 1888, você afirma que o eixo da Terra sofre alterações periodicamente, o que causa profundas mudanças geológicas…
R: A doutrina de que os mundos e as raças são destruídos periodicamente, ora pela água, ora pelo fogo (vulcões e terremotos), e que se renovam depois, é tão velha quanto o homem.
Manu, Hermes, os Caldeus e a antiguidade toda acreditavam nisso. A superfície do globo terrestre já foi mudada duas vezes pelo fogo e duas vezes pela água, desde que o homem apareceu por aqui. Assim como a terra necessita de repouso e de renovação, de forças novas e de mudança do solo, assim também sucede com os oceanos. Daí resulta uma redistribuição periódica da terra e da água, mudança de clima, etc., tudo provocado por alterações geológicas e seguido finalmente de um deslocamento do eixo da Terra.
Podem os astrônomos encolher os ombros à ideia de uma mudança periódica na inclinação do eixo da Terra, e sorrir da conversa, que se lê no Livro de Enoch, entre Noé e seu “avô” Enoch; mesmo assim, a alegoria continua indicando um fato geológico e astronômico. Ocorre uma mudança periódica na inclinação do eixo da Terra, e a sua mudança fixa está registrada em um dos grandes Ciclos Secretos. Tal como ocorre em muitas outras questões, a ciência se aproxima gradualmente do nosso modo de pensar.
7) Independentemente dos ciclos geológicos inevitáveis, o ser humano parece ter uma boa dose de responsabilidade em relação ao equilíbrio ecológico e às crises ambientais. A decadência da Grécia e de Roma antigas, por exemplo, foi em grande parte consequência da destruição de suas florestas. Henrique Roessler, um pioneiro da defesa ambiental no Brasil, afirmou em 1957: “A História mostra que os povos que se desfizeram de seus recursos naturais, entre os quais o maior é a floresta (…), desapareceram do mundo” [5]. Tendo vivido na Índia, o que é que você pode dizer a respeito?
R: Todos os patriotas hindus lamentam a decadência do seu país, mas poucos compreendem a causa real do fato. Mais do que a dominação estrangeira, o excesso de impostos ou a economia descuidada, a causa é a destruição das florestas. O desmatamento das montanhas e encostas é um crime contra a nação, e vai dizimar a população mais eficazmente do que seria possível pela espada de qualquer invasor estrangeiro. (…)
Basta olhar as páginas da história para ver que a ruína e a total extinção do poder nacional seguem-se à destruição das florestas tão certamente como a noite segue o dia. A Natureza dá os meios para o progresso humano; e suas leis nunca podem ser violadas sem desastre.
NOTAS:
[1] “H.P. Blavatsky and the S.P.R., an examination of the Hodgson Report of 1885”, livro de Vernon Harrison, membro da SPR. Theosophical University Press, Pasadena, Califórnia, EUA, 1997, 78 pp.
[2] Sobre o impacto do trabalho de HPB na história humana e na cultura do século 20, veja a parte sete da biografia “Helena Blavatsky, a vida e a influência extraordinária da fundadora do movimento esotérico moderno”, de Sylvia Cranston, Ed. Teosófica, Brasília, 1997, 678 pp. Essa é a tradução de uma das 18 biografias que há sobre Blavatsky em língua inglesa.
[3] A regra de ouro aparece no Novo Testamento: “Tudo aquilo que vocês quiserem que os homens lhes façam, façam vocês a eles, porque essa é a Lei” (Mt 7:12). No entanto, esse princípio ético não surgiu com o cristianismo. Cinco séculos antes de Jesus, na velha China, Confúcio ensinava: “O que não desejo que me façam os outros, tampouco desejo fazê-lo, eu, aos outros.” [“Lun-Yu, ou Conversas Filosóficas”, de Confúcio, obra também conhecida como “Os Analectos”, capítulo 5, versículo 11: ver Los Grandes Libros, Confúcio, Ed. Siglo Veinte, Buenos Aires, 1943, p. 94.]
[4] Eu Superior: “Higher Self” no original em inglês; a Alma Imortal, o Ser Superior, o verdadeiro Ser.
[5] “O Rio Grande do Sul e a Ecologia, crônicas escolhidas de um naturalista contemporâneo”, Henrique Luiz Roessler, edição da AGAPAN, Porto Alegre, 1984, 219 pp., ver p. 93.
FONTES BIBLIOGRÁFICAS:
As fontes das respostas acima são as seguintes, respectivamente: 1) “A Chave Para a Teosofia”, Helena P. Blavatsky, Ed. Teosófica, Brasília, 1991, 261 pp., ver p. 15; 2) “A Chave Para a Teosofia”, obra citada, mesma página; 3) “Collected Writings”, Helena P. Blavatsky, Theosophical Publishing House, Índia, 1990, volume VIII, p. 129; 4) “Collected Writings”, H. P. Blavatsky, Theosophical Publishing House, Índia, 1990, volume VIII, p. 108; 5) “Collected Writings”, obra citada, volume IX, reimpressão de 1986, página 400-H; 6) “A Doutrina Secreta”, H. P. Blavatsky, edição em seis volumes, Ed. Pensamento, SP, 1981, volume IV, p. 295; 7) Revista “The Theosophist”, Bombay, Índia, edição de novembro de 1879, p. 42. Uma edição facsimilar da coleção do primeiro ano dessa revista é distribuída pela Theosophy Company, de Los Angeles, EUA. É desta edição que traduzo.
000
Sobre o mistério do despertar individual para a sabedoria do universo, leia a edição luso-brasileira de “Luz no Caminho”, de M. C.
Com tradução, prólogo e notas de Carlos Cardoso Aveline, a obra tem sete capítulos, 85 páginas, e foi publicada em 2014 por “The Aquarian Theosophist”.
000