Pomba Mundo
 
Constituição Determina a Harmonia Entre
Os Poderes, Mas Nem Sempre é Obedecida
 
 
Michel Temer
 
 
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Nota Editorial de 2016:
 
Publicado pela primeira vez no ano 2000, o artigo a seguir questiona a real solidez da consciência democrática no Brasil. Temer afirma que, para fortalecer-se, a democracia deve estar associada à justiça social.
 
Assim como outros artigos deste constitucionalista, o texto menciona a alternância de ciclos autoritários e democráticos na história do Brasil. Veja-se a esse respeito sua crônica “Democracia e Autoritarismo”,  que está disponível em nossos websites associados.
 
A força dos ciclos cármicos é conceito central em filosofia esotérica, e uma chave para compreender a história dos povos.
 
A alternância infantil entre períodos ditatoriais e democráticos no Brasil começou com o golpe militar, pouco ético, que proclamou a República em 1889.
 
Movidos pelo medo, os golpistas mandaram apressadamente para morrer de desgosto no exílio um imperador correto, um estudioso da sabedoria universal, alguém que dera estabilidade ao país.[1] Desde então os autoritarismos de “esquerda” e de “direita” têm ameaçado constantemente o futuro do Brasil, no mínimo na condição de fantasmas. No século 21, cabe promover de uma vez por todas a consolidação da ética, da consciência legal e da democracia.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
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A Democracia Social e o Império da Lei
 
Michel Temer
 
A “Folha de S. Paulo” publicou pesquisa reveladora de que mais de 50% dos brasileiros não aplaudem a democracia. É até assustador o número de pessoas que aprovariam um sistema autoritário. Vi, lamentavelmente, confirmar o que venho dizendo já algum tempo: o Brasil vive fluxos de democracia e refluxos de autoritarismo.
 
É o que evidencia a nossa trajetória constitucional. A vinte, trinta anos de um sistema aberto, participativo, segue-se outro período de sistema fechado, ditatorial. Tem sido assim desde a Primeira República. Montou-se sistema aberto (para a época), até 1930, quando começaram a soprar os ventos do autoritarismo, que se consolidou em 1937, perdurando até 1945; vivenciamos a democracia de 1946 a 1964, seguida do autoritarismo de 1964 a 1982.
 
E há 18 anos estamos em regime aberto, quando pudemos presenciar a cassação de um Presidente da República e – por incrível que pareça – a assunção de seu vice, que conclui o mandato. Eleições livres elegem novo mandatário que se reelege sem traumas.
 
Aparentemente, o regime democrático denotava consolidação. Não é, entretanto, o que a pesquisa revelou. Cabe, aqui, a confirmação de outro fato que tenho ressaltado: quando ocorre o chamado “Golpe de Estado”, vem ele amparado pela vontade popular e não apenas pela força dos “golpistas”. Não quero ser catastrófico, porém creio ser oportuno fazer um alerta sobre o significado da pesquisa, que revela o estado de espírito do povo brasileiro.
 
De nada vale garantir ao cidadão o direito de livre manifestação, de associação, de livre circulação, de livre convicção política e religiosa, se lhe falta pão sobre a mesa.
 
Locupletamo-nos, como é sabido, da democracia política. Desfrutamos dela. A locução nacional se abriu por completo. O discurso, em certos momentos, extravasa nas bordas do exagero. Todos podem criticar a todos, se assim o desejarem. Não temos, pois, carência do arcabouço libertário. Em contrapartida, sobram carências em outro eixo, o da democracia social, a do “pão sobre a mesa”. Esta expressão quer significar a democracia de conteúdo social, voltada para o escopo do desenvolvimento, do emprego, da segurança pública, da saúde e educação. Em síntese: a democracia provedora da Cidadania, das condições dignas de vida. Quando o jogo democrático é incapaz de influir na distribuição de riqueza, perde sua principal fonte de legitimação.
 
A estabilidade da moeda, é certo, foi uma grande conquista para o País. O Brasil, com sua economia estabilizada, voltou a se fazer respeitar no cenário internacional. Mas, no plano social, o País ainda precisa avançar, e muito. Basta um rápido olhar sobre a moldura dos contrastes nacionais: 1% da população brasileira detém mais de 50% do estoque de riqueza do País; cerca de 40% da população urbana vive abaixo da linha de pobreza.
 
Uma democracia sem igualdade de oportunidades e que não se apresenta como instrumento para diminuir aberrantes distâncias sociais é mera caricatura de si mesma. Outro aspecto que, nesse momento, merece atenção é o conceito do império da lei como alicerce maior da democracia. É a lei que organiza, que determina, que dá estabilidade às relações sociais. Saber o que dizem a Constituição e a Lei e aplica-las é saber quais são “as regras do jogo”. Se alguém contrata, investe, produz, constitui família, se emprega, saberá quais são as normas regentes de seu ato, que só será permanente se o sistema jurídico for estável e, especialmente, se for obedecido.
 
A que, porém, temos assistido? À completa desobediência da lei. Exemplifico: a Constituição determina a harmonia entre os Poderes. Nem sempre é obedecida. Nada contra o MST [2]. Como seus integrantes, porém, se julgam no “direito”, contra a lei, de invadir terras, também alguém poderá, caso assim entenda, dizer que a cobrança do pedágio é inconstitucional e derrubar as barreiras com seu carro, sem buscar solução no Judiciário. Poderá simplesmente fazer “a sua lei” e contrariar o que as leis do país determinam.
 
Alguém poderá alegar que a lei, às vezes, é injusta e não se deve cumpri-la. É uma concepção. Equivocada, porém, pois gera desordem, que é a violação da ordem legal. Se a lei é injusta, a sociedade há de buscar sua modificação por meio dos canais competentes, entre os quais os partidos políticos com representação nas Casas Legislativas. Tudo isso deriva da nossa formação e da nossa cultura. Basta ver como somos pródigos em jogar papel na rua, quebrar orelhões telefônicos, pichar prédios públicos e particulares, invadir sinal vermelho, caminhar em pista de ciclista, ou vice-versa, ciclista pedalar em área de pedestres. Aliás, fala-se muito em “tolerância zero”. Ora, o que ela significa se não apenas o cumprimento radical da lei? Afinal, pode-se quebrar vidraças, pichar prédios, fazer baderna nas ruas? Não. A lei não o tolera. Isso é “tolerância zero”.
 
Estas deficiências e distorções acabam gerando falta de crença no sistema democrático. Daí pregar-se a necessidade de um dirigente autoritário, forte, bravo, raivoso, para pôr ordem na casa. Esse é o risco de descambarmos numa ditadura. Autoridade é aquela que aplica rigorosamente a vontade da lei e não aquele que impõe sua vontade ditatorial.
 
Não podemos perder a oportunidade de consolidar a nossa democracia. Nunca, como agora, combateu-se com tanta eficácia a corrupção. Se ela induz as pessoas a acharem que ninguém é confiável, também é certo que uma boa pregação há de revelar que este combate é necessário para se colocar o País nos trilhos da res pública, da coisa pública.
 
Alguém poderá perguntar: e o meu emprego, a minha segurança, o direito de andar tranquilamente pelas ruas onde ficam? É importante lembrar que não são mais leis que solucionarão o problema (há um velho hábito no País: existe um problema, faça-se uma lei). Esquece-se que a questão é de execução, de administração. Segurança pública? Aloquem-se e invistam-se recursos. Só para exemplificar: os distritos policiais, há muito tempo, transformaram-se em mini-presídios, quando sua tarefa é apenas a de reter o preso em espera de julgamento. Há 180 mil presos no Brasil e mais de 100 mil mandados de prisão sem cumprimento. (Nos Estados Unidos, vale lembrar, há 2 milhões de presos.) A solução? Presídios, agentes especializados na tarefa de guardar presos, unificação dos meios operacionais das polícias civil e militar, remuneração adequada, operações conjuntas de ambas as policiais, meios para entregar a segurança pública à competência administrativa municipal. Excetuada a última sugestão, o resto depende de investimento. Bem fariam os autores do Plano de Segurança Pública se atentassem para tais questões.
 
É claro que o combate às origens da criminalidade deve ser absoluta prioridade. E aí chegamos ao campo do desenvolvimento. Uma das ferramentas? A Reforma Tributária. Com ela, viria a desoneração do setor produtivo com vistas a propiciar o aumento da produção e a consequente ampliação do emprego. É lamentável constatarmos que o sonho da maioria dos empresários nacionais, hoje, é o de vender sua empresa para a grande empresa estrangeira. Se isto ocorre, alguma coisa não vai bem. Saúde? Educação? Recursos para combater a miséria que assola grande parte do País.
 
O que precisamos mesmo é de Ordem e Progresso, valores que os nossos primeiros republicanos anteviram como síntese necessária para a consolidação do País. A Ordem é o cumprimento da lei e o Progresso é a concretização de metas sociais para a consolidação da Cidadania e da Nação.
 
NOTAS:
 
[1] Veja em nossos websites associados o artigo “A Filosofia de Dom Pedro II”. (CCA)
 
[2] MST: Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que ficou famoso por fazer invasões de terras. (CCA)
 
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O artigo acima foi publicado pela primeira vez em 01 de agosto do ano 2000. É aqui reproduzido da obra “Democracia e Cidadania”, de Michel Temer, Malheiros Editores, SP, 2006, 288 páginas, ver pp. 49 a 52.
 
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