Felizes Aqueles que Compreendem
Seus Erros a Tempo, e Decidem Corrigi-los
 
 
Henrique Luiz Roessler
 
 
 
 
 
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Nota Editorial de 2021
 
O texto clássico que publicamos a seguir é de
1960 e aponta para uma escolha fundamental a fazer.
Todo e qualquer momento do século 21 é uma ocasião
propícia para restabelecer a harmonia com a natureza.
 
(Carlos Cardoso Aveline)
 
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Era uma vez uma grande floresta, com enormes árvores de muitas espécies, como feitas para a eternidade, cujas fortes raízes penetravam fundo na terra, entre as pedras, dando-lhes absoluta firmeza contra as tempestades.
 
Suas frondosas copas formavam uma ruidosa cúpula verde, cheia de vida, a qual se elevava a grande altura dos arbustos e fruteiros silvestres do sub-bosque.
 
Em brilhantes filetes gotejava a água do chão úmido e fofo como uma esponja e coberto de musgos e folhagens, formando pequenos córregos, que serpenteavam entre os troncos e as rochas, caindo em cascatas rumo às baixadas.
 
Alcançadas as várzeas ao pé dos morros, se espraiavam e formavam pequenos lagos entre verdejantes campinas e capões, continuando, depois de se unirem, num forte e límpido rio, a correr pela planície afora.
 
E o grande império verde ressoava do farfalhar do vento nas folhas, dos cânticos da passarada e do zunido das abelhas e estava cheio de animais silvestres e nas águas abundavam peixes.
 
Reinava naquele paraíso da natureza uma perfeita comunhão de vidas.
 
Certo dia vieram de longe uns homens e comentaram entusiasmados:
 
“Este mato é inesgotável”.
 
Se estabeleceram na planície, na beira do rio e começaram logo a derrubar para construir suas casas, veículos e embarcações, escolhendo sempre as mais grossas e as mais linheiras [1]. Para alcançá-las, cortavam largas picadas e queimavam a madeira inferior e os galhos; para desimpedir a passagem para os arrastos dos troncos. Nunca ninguém se lembrou de reflorestar um único pé.
 
Durante trinta, cinquenta anos aqueles homens despreocupados saquearam aquele gigantesco rico mato. Quando alguém apontava o erro e falava em reflorestamento, era ridicularizado. No decorrer dos anos aquele primitivo lugarejo se desenvolveu numa populosa cidade industrial. Vieram agricultores, que abriram enormes clareiras na floresta e faziam grandes queimadas nas coivaras para roças e pomares, porque havia sempre maior procura de alimentos.
 
Crescia também o consumo de lenha e carvão para uso doméstico e industrial e de madeira para móveis e construções e por isso instalaram uma grande serraria, processando-se então a devastação em marcha batida.
 
De repente os homens inteligentes se assustaram, porque viram que as árvores não cresciam tão rapidamente como eram cortadas, que só restavam restolhos tortos, brotos e macegais e que começava a escassear a água dos arroios e do rio.
 
Reconheceram que tinham que reflorestar. Os bem inteligentes diziam:
 
“Se temos que reflorestar, vamos então plantar somente árvores de rápido crescimento para compensar o emprego do nosso capital.”
 
Foi aí que cometeram o maior erro de sua vida.
 
Devastaram e queimaram toda a vegetação das encostas dos morros, deixando o solo nu, lavraram e encheram tudo com eucaliptos, essa árvore estrangeira, que seca e desfertiliza a terra. Plantaram as mudas bem juntinhas e em fileiras, para não perder nenhum pedacinho de chão. E os homens inteligentes se alegravam, quando a grande floresta renasceu e diziam:
 
“Estão vendo? É só preciso ensinar as árvores a crescer.”
 
Mas vieram as enxurradas do inverno e arrancaram a camada humosa da terra com muitas mudas, levando tudo para as baixadas, onde se formaram banhados e brejais, atulhando também o rio, cujas águas ficaram toldadas.
 
Era a erosão em plena ação. Fizeram replantio às pressas, mas o mato artificial parecia uma lavoura de varas, onde o vento passava livremente. Não se criou sub-bosque, nem qualquer vegetação, porque a terra foi capinada e ficou dura e compactada como cimento, incapaz de reter as águas das chuvas, como antes acontecia no mato virgem. Secaram as fontes dentro do novo mato e ao redor dele e deixaram de correr muitos arroios na região. Somente nos dias de grandes chuvaradas se enchiam os antigos leitos e se transformavam em violentas corredeiras, arrancando as barrancas e fazendo transbordar o rio, provocando enchentes, que logo eram seguidas de prolongadas vazantes.
 
E os homens inteligentes se viram obrigados a construir às pressas uma barragem, para não paralisar a Usina Elétrica e a Hidráulica, alimentadas pelas águas do rio.
 
Os pássaros e os animais silvestres fugiram daquele mato artificial, porque não encontraram mais locais para nidificar, nem esconderijos. A maioria da fauna foi abatida pelos caçadores da cidade.
 
Criaram-se no mato artificial milhões de insetos nocivos, agora livres de seus inimigos naturais, os pássaros, e começaram a destruir as plantações vizinhas e broquear as árvores.[2] O mato sangrava de inúmeras feridas. As árvores doentes tinham que ser derrubadas e aproveitadas às pressas. Pulverizações de veneno sobre a floresta de nada adiantaram.
 
Os homens presunçosos ficaram muito quietos e pensativos diante da desgraça e com saudades dos passarinhos que espantaram e da riqueza florestal que esbanjaram.
 
Mas a medida dos desastres ainda não estava completa. O mato enfraquecido, de raízes superficiais, não resistia aos ventos fortes. Sobreveio uma forte ventania que desenraizou e quebrou centenas de milhares de pés, numa larga frente, formando montes de madeira estraçalhada.
 
Certo dia, por descuido dos lenhadores, incendiou-se aquela enorme massa de troncos e galhos ressequidos.
 
O devastador incêndio foi preciso combater com contrafogo posto, ficando assim sacrificada mais uma extensão de mato.
 
A grande floresta morreu naquele dia pela segunda vez.  
 
Mas não era ainda tudo. No verão secou a represa, paralisando a Usina Elétrica, a Hidráulica e as Indústrias, ficando milhares de operários sem trabalho.
 
A cidade ficou sem luz e sem água, a qual tinha que ser trazida de longe em caminhões-tanques. O nível do lençol de água subterrânea também baixou perigosamente, fazendo secar os poços.
 
Morreram as plantações e os pomares e os agricultores invadiram a cidade, criando tremendos problemas à Administração.
 
Só então os homens tão inteligentes e infalíveis compreenderam o que significa comunhão de vida na floresta, colocada pela Mão Divina onde faz falta.
 
Para não deixar morrer a cidade e para poderem “sobreviver”, são agora obrigados a ressuscitar pela terceira vez a grande floresta, mas de acordo com as imutáveis Leis da Natureza e com o dispêndio de fabulosos recursos privados e oficiais.
 
Este exemplo de grave imprevidência encontra paralelos em todo o mundo, onde o homem, este ser superior, mete a mão na Natureza e onde o Poder Público não cuida do seu mais precioso Patrimônio, o qual significa vida ou morte, riqueza ou miséria para as respetivas populações. Felizes aqueles que compreenderem seus erros em tempo e possuírem ânimo e recursos para corrigi-los.
 
NOTAS:
 
[1] Linheiras: retas. (CCA)
 
[2] Broquear: brocar, furar, perfurar. (CCA)
 
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Nota Bibliográfica:
 
 
 
O conto “Imprevidência de Homens Inteligentes” está disponível nos websites associados desde o dia 20 de julho de 2021.
 
A narrativa foi inicialmente publicada no Suplemento Rural do “Correio do Povo” de Porto Alegre em 28 de maio de 1960. Mais tarde foi reproduzida como panfleto pela União Protetora da Natureza, UPN. Um exemplar do panfleto faz parte da biblioteca da Loja Independente de Teosofistas. Veja a foto acima.
 
Ao longo do panfleto de distribuição gratuita, Roessler colocou diversas palavras em negrito. Na nossa transcrição, adotamos os negritos do panfleto da UPN. Também seguimos o texto do panfleto, quando, perto do fim, ele fica diferente do texto publicado no jornal. Em suas frases finais, o texto do panfleto está mais atualizado e foi adaptado para o público amplo pelo próprio autor, que eliminou menção a acontecimentos de curto prazo.  
 
Na década de 1980, a versão do jornal, menos atualizada, foi incluída no volume “O Rio Grande do Sul e a Ecologia”, de Henrique Luiz Roessler. O livro é uma coletânea de textos preparada pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, e publicada por Martins Livreiro Editor, em Porto Alegre, RS, em 1986, com 220 páginas. Ver pp. 81-84. (CCA)
 
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Henrique Luiz Roessler nasceu em 16 de novembro de 1896 e viveu até 14 de novembro de 1963. Foi o primeiro ecologista do Rio Grande do Sul e um dos primeiros do Brasil. Entre os pioneiros, Roessler parece ser o único que deixou uma obra escrita importante e uma presença marcante na sociedade. (CCA) 
 
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Leia mais:
 
 
* Velhas Árvores Mortas Estupidamente (de Henrique Luiz Roessler).
 
* A Razão do Coração (de Henrique Luiz Roessler).
 
 
* Monstrópolis – a Grande Capital (de Henrique Luiz Roessler).
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 
 
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