Há uma Ponte de Pensamento Lúcido
Entre o Ideal Cristão e a Teosofia Clássica
Carlos Cardoso Aveline
Helena Blavatsky (1831-1891) e uma imagem de Jesus pregando
Jesus Cristo ensinou por parábolas, isto é, o seu ensinamento possui camadas internas ou superiores de conhecimento.
De fato, existem chaves de leitura pelas quais podemos compreender as escrituras cristãs desde um ponto de vista mais profundo e mais universal. Eis, a seguir, os significados esotéricos de algumas expressões e conceitos do cristianismo popular.
* Agradar a Deus.
A expressão é usada na tradição dos Pais do Deserto. Significa ampliar, pelas suas ações e pela sua atitude, o contato do peregrino com o seu eu superior, ou seja, a alma espiritual, e o mundo divino.
* Anjo.
A palavra pode significar muitas coisas, desde uma pessoa bondosa até o espírito de uma estrela. As hostes de anjos no céu, a que se refere o cristianismo clássico, são os espíritos das estrelas, conforme Helena Blavatsky demonstra.[1]
* Anjo da Guarda.
Este anjo, de que se fala às crianças, é claramente um símbolo do eu superior ou alma imortal, que nos acompanha, guia, protege e orienta a cada passo desde o nascimento até o final da nossa encarnação. Infelizmente ele nem sempre é escutado, e às vezes sequer lembramos da sua presença a nosso lado.
A comunicação entre nós e o nosso anjo da guarda depende de Antahkarana.
“Rezar para o seu anjo da guarda” é perfeitamente correto, especialmente se o verbo “rezar” tiver o significado de entrar em sintonia, prometer lealdade e fortalecer o sentido da presença deste anjo-testemunha e anjo-mestre junto a nós.
É interessante que se fale especialmente às crianças sobre o anjo da guarda, porque as crianças até aproximadamente os sete anos ainda são seres pouco materiais e vivem em parte em um clima de lembranças subconscientes do estado abençoado em que estavam antes de nascer. Este local de bem-aventurança é o Devachan, o “Paraíso Celeste” em que a alma experimenta o estágio mais elevado, mais longo e inteiramente espiritual, do período entre duas encarnações. O Devachan é um território de sonho celeste que pertence ao carma individual e portanto não é coletivo. Mas nele não há isolamento e sim felicidade ao lado dos seres queridos. Ali a energia do Eu Superior está no centro dos acontecimentos.
* Boa Vontade.
É o sentimento que permite plantar bom carma, ou seja, construir um Destino favorável. É a intenção que liberta do mau carma do egoísmo, isto é, do inferno da estreiteza de horizontes.
* Céu.
Um claro símbolo dos níveis superiores de consciência. Daí temos “consciência celeste”, “visão celeste”, “seres celestes”, etc. “Deus do Céu” não é um conceito astronômico. Significa o conjunto das inteligências divinas que habitam o cosmo, não no plano físico, mas nos níveis superiores da consciência universal.
“Ir para o céu” depois da morte física significa ir para o Devachan, o local abençoado entre duas encarnações, isto é, aquele nível de consciência divina em que a alma espiritual descansa longamente antes de encarnar outra vez. Leia “O Processo Entre Duas Vidas”. Examine “A Teosofia e a Reencarnação”. Veja “Jesus Ensinou Sobre Reencarnação”.
* Cristo.
Basicamente um sinônimo de Jesus, mas o termo refere-se mais fortemente ao aspecto solar e cósmico da consciência de Jesus.
* Cristianismo Místico.
Nas “Cartas dos Mestres de Sabedoria”, primeira série, Carta 1, vemos esta afirmação do Maha-Chohan, conhecido como o Mestre dos Mestres, sobre ao futuro da humanidade:
“O Cristianismo místico, isto é, aquele Cristianismo que ensina a autolibertação através do nosso próprio sétimo princípio – o Para-Atma (Augoeides) libertado, chamado por alguns de Cristo, por outros, de Buda, e equivalente à regeneração ou renascimento em espírito – será visto como exatamente a mesma verdade do Nirvana do Budismo. Todos nós temos de nos livrar de nosso próprio Ego, o ser ilusório e aparente, a fim de reconhecer nosso verdadeiro ser em uma vida divina transcendental. Mas, se não formos egoístas, devemos esforçar-nos e fazer com que outras pessoas vejam essa verdade, e reconheçam a realidade desse ser transcendental, o Buda, Cristo ou Deus de cada pregador.” O documento está disponível online: “A Carta do Maha-Chohan”.
* Demônio.
Os significados são muitos, abrangendo desde uma pessoa considerada má, até espíritos negativos imaginados por pessoas supersticiosas. Entre os Padres do Deserto, os demônios a serem enfrentados através da disciplina diária são os instintos animais, que habitam o subconsciente do peregrino. Expandidos pela força do hábito, tais demônios se revestem de belas desculpas racionais e explicações “espiritualizadas”, enganando a parte autoconsciente do buscador da verdade. São a matéria-prima da parte antievolutiva do subconsciente humano, e a fonte do sentimento subconsciente de “resistência” contra a caminhada espiritual.
Veja o artigo “Os Teosofistas Combatem Demônios?”. Leia “Resistência à Mudança, em Teosofia”.
* Destino.
O destino de cada peregrino é traçado todos os dias por ele mesmo através das suas ações, das suas intenções e da sua atitude. O destino, portanto, é algo dinâmico. “Não está morto quem peleia e luta”, diz o ditado popular. O carma pessoal é elástico. Aquele que nasceu “destinado” a algo construiu um carma em encarnações passadas que toma a forma de Destino na encarnação atual. Cabe a nós, portanto, construir um bom Destino para esta encarnação em que estamos, e para as próximas. O destino é o Carma.
* Deus.
Personificação poética e popular da Lei Universal, a Lei do Carma, a Lei do Equilíbrio, a Lei da Simetria. Mas o termo também é usado como sinônimo de eu superior. “Rezar para Deus” é orar para nossa alma imortal. “Temer a Deus” é lembrar de que somos mortais, porém temos um Mestre e Professor Celeste, que é sobretudo nossa Alma Espiritual; e ela não chega a ser exatamente “nossa”, já que na verdade nós é que pertencemos a ela.
* Fé.
Confiança em si mesmo, confiança na vida, confiança nos outros. Confiança naquilo que consideramos sagrado, eterno e inspirador. A confiança é como uma luz que ilumina a vida nas várias direções. Boa-fé significa boa vontade, e resulta de um contato correto com a nossa própria alma espiritual.
* Graça.
A graça desce como o orvalho da madrugada, abençoando as almas que buscam o bem. A graça divina é o bom carma acumulado, quando ele cai silenciosamente sobre nós, e dissolve a dor nas águas ilimitadas do oceano do saber divino, que é o oceano da boa vontade universal.
* Inferno.
É o sofrimento que os seres humanos provocam para si mesmos e para aqueles a quem amam ou odeiam. Fazem isso através da sua própria ignorância infantil. O inferno é eterno enquanto dura. Mas ele perde força e se dissolve através da Compreensão e da Boa Vontade.
* Ira do Senhor.
A Ira de Deus é o carma negativo acumulado. Quando uma nação ou civilização cai na imoralidade, no materialismo e na falta de ética, provoca a Ira de Deus, isto é, acumula mau carma, e será destruída pelo aspecto severo e rigoroso do Carma. Mas sempre haverá um certo número de Justos em qualquer tipo de civilização, e uns poucos Justos podem evitar o pior, conforme for o seu número e a força interior que eles têm.
* Jesus.
Jesus significa o nosso eu superior, o sexto princípio da consciência humana, Buddhi. Tem uma relação estreita com a voz da nossa consciência. Mas a figura humana de Jesus, com seus poderes ocultos, simboliza também os Sábios Imortais presentes desde a antiguidade em diferentes tradições culturais. Neste sentido, Jesus é um Buddha, um Adepto, um Mahatma, um grande Iniciado, um Imortal taoísta, um Rishi hindu.
* Missa.
A prática religiosa recomendada por Jesus, assim como pelos teosofistas, está em Mateus 6:6-7: “Mas você, quando orar, vá para o seu quarto, feche a porta e ore ao seu Pai, que não pode ser visto. E o seu Pai, que vê o que você faz em segredo, lhe dará a recompensa.”
O templo verdadeiro é o templo interior, construído sem o barulho de martelos, porque existe na alma do peregrino. Por mais inspiradora que seja uma missa, ainda não é a “verdadeira cerimônia” ensinada por Jesus. Por mais bela que seja uma igreja feita de tijolos, ainda não é o verdadeiro templo erguido em nossa própria alma.
* Natal.
Celebração de origem pagã, o Natal pertence a todos os povos. Ele pode ser visto em profundidade como uma festa que homenageia as grandes iniciações – isto é, as grandes expansões de consciência de que os seres humanos são capazes em certas ocasiões.
Mas cabe viver o Natal também como uma comemoração e um agradecimento pela fraternidade universal de todos os seres. Leia “Não Pergunte Quem Nasce no Natal”, “O Natal Como Lição de Simplicidade”.
Veja também “O Natal de Ontem e o Natal de Hoje”, “Sobre o Natal e o Ano Novo”, “O Presépio na Alma de Cada Um” e “O Significado da Estrela de Natal”, entre outros artigos que encontrará nos websites da Loja Independente.
* Oração.
O tema é abordado detalhadamente nos grupos de estudo e ambientes de leitura da LIT. Veja por exemplo “A Prática da Oração Constante”. E também “Sobre a Prática da Oração”.
Examine a seção temática “Poemas Filosóficos e Orações de Diversos Autores”.
* Pai do Céu.
É o Eu superior. O nível imortal do ser humano. Ele é nosso Pai no sentido de que nascemos, de uma certa maneira, por uma decisão dele. Nascemos sobretudo do alto e não só da Terra. Somos o resultado da aproximação que o Pai do Céu fez do plano físico, para que surgíssemos da interação entre Ele e a Mãe Terra, a Mãe Matéria.
O Pai do Céu Espiritual manda um raio de luz que penetra a Mãe Terra, e como resultado nós nascemos. Somos portanto uma ponte humana e uma síntese precária entre o Pai e a Mãe, o Céu e a Terra. Em certos contextos, Pai do Céu pode ser também Augoeides, a Estrela que guia cada ser humano, e mais especificamente a estrela que guia cada Iniciado, como vemos na lenda do nascimento de Jesus.
* Paraíso.
A ideia de paraíso em geral evoca o Devachan, que já vimos nos itens “Anjo da Guarda”, “Céu”, e “Ressurreição”.
Quanto ao Paraíso de Adão e Eva, vejamos um trecho da Bíblia judaico-cristã. Para compreendê-lo desde o ponto de vista teosófico, é preciso levar em conta que “Deus Jeová” é a Lei Universal em ação na Terra, e é também o bom carma acumulado pela Onda de Vida em nosso Globo.
Diz o Gênesis, cap. 2, versículos 8-12:
“Jeová Deus plantou um jardim em Éden, no Oriente, e aí colocou o homem que modelara. Jeová Deus fez crescer do solo toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, e a Árvore da Vida no meio do jardim, e a Árvore do Conhecimento do bem e do mal. Um rio saía de Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando quatro braços. O primeiro chama-se Físon; rodeia toda a terra de Hévila, onde há ouro; é puro o ouro dessa terra na qual se encontram o bdélio [resina aromática de origem vegetal] e a pedra ônix.”
Somos portanto irmãos de um jardim, de uma floresta. E somos irmãos dos primeiros rios. Nascemos num meio ambiente em que havia ouro em estado natural. O fato simboliza a idade áurea do desenvolvimento da alma humana, em que predomina o espírito puro, a mente superior, elevada, espiritual. E a pedra ônix é associada a Vênus, à pureza, à segurança e à proteção.
A árvore do conhecimento do bem e do mal nos era proibida porque ela simboliza o conhecimento dualista, fragmentado, dominado pela ilusão da separatividade, que resulta do egoísmo e também é causa do egoísmo.
Tudo é cíclico na história humana.
É perfeitamente possível e talvez seja inevitável voltar à floresta primordial chamada de paraíso. Para isso, no entanto, cabe transcender a mente egocêntrica e alcançar outra vez a mente sagrada, a inteligência pós-dual, a consciência sintetizadora, criativa, que vive o contraste como coisa secundária e a unidade da vida como fato central. [2]
* Pecado.
A palavra deve ser libertada da pesada carga de superstição que a rodeia. Pecado significa erro, e todos erramos. Pecador é quem erra, isto é, pecador é um ser imperfeito, e todos o somos. Mas podemos, e devemos, aperfeiçoar-nos. É o nosso dever.
Quem estiver livre de pecado, isto é, livre de imperfeições, que atire a primeira pedra.
* Perdão.
É preciso deixar claro que nenhum perdão remove o carma. O perdão liberta o ser humano da autocondenação subconsciente obsessiva e do apego supersticioso ao sofrimento desnecessário. O perdão liberta o peregrino para que repare o seu erro e retome o aspecto abençoado da sua caminhada pela vida. Assim, o perdão não apaga o passado. E o perdão só pode ocorrer quando o autor do erro o merece. O autor do erro está profundamente arrependido? Ele compreendeu o seu fracasso interior? Ele sofreu com o seu erro? O perdão não pode ser um gesto irresponsável e gratuito.
* Providência Divina.
É o funcionamento dinâmico da Lei do Carma em seu sentido construtivo. A Providência cuida de nós. A Lei nos protege. Nosso bom Carma nos guia e orienta e evita o pior. Se ajudarmos a Providência, ela nos ajudará.
* Remorso.
O arrependimento é o primeiro passo para a reparação do dano causado. O sentimento é elogiado nas Cartas dos Mahatmas. Leia por exemplo o artigo “A Arte de Arrepender-se”. Veja “Aprendendo com o Sentimento de Remorso”.
* Satã.
Nas Cartas dos Mahatmas, vemos sobre Satã um texto de Eliphas Levi, comentado por um Mestre dos Himalaias.
Para a Teosofia, Satã “é apenas um tipo, e não um personagem real”. Satã é “a sombra revoltosa que torna visível para nós a luz infinita do Divino.” (“Cartas dos Mahatmas”, Ed. Teosófica, vol. II, p. 378.) Eliphas acrescenta: “O Demônio sempre perturba, mas nunca dá nada em retribuição. São João o chama de ‘a Besta’ (la Bête) porque sua essência é a loucura humana (la Bêtise humaine).” (“Cartas dos Mahatmas”, vol. II, p. 380.)
Num excelente estudo sobre os apotegmas dos Padres do Deserto, vemos que Satã é “o príncipe deste mundo”, isto é, o príncipe das civilizações materialistas, organizadas em torno de poderes coercitivos econômicos ou militares, e que negam ou dificultam a vida da alma espiritual. (“La Voie Royale du Désert”, Fr. Étienne Goutagny, Éditions DésIris, 1996, 361 pp., ver p. 09.)
Em resumo, tanto para a teosofia como para o cristianismo, Satã é aquilo que se opõe, que se contrapõe, combate e boicota o contato humano com o mundo divino, e ataca a nossa necessidade de evoluir como almas. Satã é a ignorância espiritual, quando teimosa e astuciosa.
* Ressurreição.
Significa reencarnação. Leia “A Reencarnação Segundo o Cristianismo”. Veja o artigo “Jesus Ensinou Sobre Reencarnação”.
Em certas situações pode-se considerar que o Devachan é uma Ressurreição que ocorre no mundo espiritual. Examine os artigos já citados “O Processo Entre Duas Vidas” e “A Teosofia e a Reencarnação”.
* Senhor.
Em várias situações, a palavra “Senhor” significa eu superior e Atma, ou seja, o nível de consciência mais elevado do próprio peregrino. Devemos lembrar que o eu superior está em unidade direta e imediata com o Cosmos, o Logos Solar e a Lei do Cosmos. A palavra também é usada como sinônimo de Deus, ou seja, como uma personificação simbólica e poética da Lei Universal.
* Sofrimento.
Uma forma inevitável de purificação, na vida da humanidade atual. Uma grande fonte de lições. A maior parte das sementes da sabedoria futura dorme ainda no sofrimento de cada peregrino.
Caminhar para a frente significa compreender a dor e transmutá-la em conhecimento, e tem por base a decisão inabalável, vitoriosa, de agir corretamente. Veja o artigo “As Lições Que o Sofrimento Ensina”, do médico e pensador francês Paul Carton.
NOTAS:
[1] Leia “Star Angel Worship in the Roman Catholic Church”.
[2] A abordagem do paraíso de Adão e Eva reproduz a maior parte do artigo “As Árvores, os Rios e os Seres Humanos”, publicado sem indicação do nome de autor na edição de outubro de 2021 de “O Teosofista”, pp. 8-9. Veja também “A Teosofia das Florestas”.
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O artigo “Notas Para um Dicionário Teosófico da Mística Cristã” está disponível nos websites da Loja Independente de Teosofistas desde o dia 21 de junho de 2024.
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Leia mais:
* Examine nos websites da Loja Independente de Teosofistas a seção temática “Cristianismo e Teosofia”.
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