Caminho Espiritual e Integração Consigo Mesmo
Carlos Cardoso Aveline
O processo de aprendizagem da teosofia é uma transmutação psicológica da dor em contentamento e da ignorância em sabedoria. Não basta olhar para o alto: é preciso ao mesmo tempo transformar o que está na Terra.
Quando surgem desafios ao longo do caminho, muitos pensam que um maior envolvimento do peregrino com o esforço teosófico leva a uma maior integração da sua personalidade. O trabalho altruísta tem um poder alquímico e em geral torna mais coerente a relação entre os pensamentos, os sentimentos e as ações do indivíduo.
A ideia é correta na maior parte dos casos, mas a psicologia moderna e a teosofia clássica mostram que não é sempre assim. Há várias exceções documentadas na história dos movimentos esotéricos e do esforço teosófico, tanto nos séculos 19 e 20 como no século atual.
Na definição do Carma de um indivíduo, tudo depende de três níveis da sua motivação ao tentar percorrer o caminho espiritual: o nível consciente, o nível subconsciente, e o supraconsciente. Em todos os seres humanos há uma diferença entre a noção profunda de eu, de um lado, e, de outro lado, o “eu social”, o eu visível.
Quando existe uma fissura grande entre a intenção do eu interno (subconsciente) e a intenção do eu socialmente visível, um maior envolvimento com os aspectos externos da causa teosófica pode aumentar, ao invés de reduzir, o divórcio entre a aparência social e a realidade vivenciada internamente.
E isso torna difícil o funcionamento de antahkarana, o contato com a alma espiritual, que é a fonte de toda legitimidade no caminhar. Quando falta coerência na relação consigo mesmo, a distância entre pensamento, sentimento e ação pode alcançar níveis absurdos.
Como se evita o problema?
O peregrino deve avançar tão devagar quanto necessário para que a sua integração consigo mesmo não fique em perigo, mas mantenha-se, e até aumente, mesmo que aos poucos. O autorrespeito e o autoconhecimento são inseparáveis. É impossível avançar sem eles.
No processo de busca da sabedoria, o peregrino deve observar o grau de contradição e contraste entre o seu “eu social” – sua individualidade tal como é percebida pelos outros – e o seu “eu profundo”, que os outros não veem.
Alguns estudantes tentam sinceramente identificar-se por completo com o seu “eu socialmente construído”, o eu elogiável, o eu das aparências. Não percebem que, quanto mais representam um papel “admirável” diante dos outros, mais frustração é produzida em seu subconsciente. O esforço por parecer santo ou sábio é uma forma de violência psicológica contra si mesmo. Seus verdadeiros sentimentos são desrespeitados. Como resultado do fingimento, as emoções negativas ficam mais profundas e se alastram em seu interior.
Ao realizar esforços para “ser” o personagem espiritualizado que mostra aos outros, o indivíduo luta contra os fatos. Pensa que, obtendo aceitação social e reconhecimento por suas ações nobres, a energia acumulada da boa ação – e dos elogios – lhe dará forças para “soldar” a fissura entre o Eu não-elogiável, cheio de medo ou raiva, e o Eu politicamente correto que é mantido nas interações sociais.
A esperada “solda” ou cura não acontece, por que a Intenção Profunda é completamente diferente da intenção socialmente demonstrada. O eu emocional básico é antagônico ao eu emocional que existe para-os-outros-verem. E quanto mais a pessoa tenta ser politicamente correta, maior é a frustração, e mais fortes o receio, o orgulho e a agressividade dissimulados em seu interior.
Esta simetria de sinais trocados entre sentimentos demonstrados e sentimentos interiores é bastante perigosa em teosofia. É melhor não avançar, do que avançar na direção da falsidade.
Na história dos povos, a hipocrisia social é uma das fontes dos piores conflitos políticos e religiosos. É do processo acumulado de mal-estar emocional que resultam as guerras.
Quando os líderes políticos vivem principalmente de aparências e marketing, o rancor anda solto na sociedade. Conflitos armados e terrorismo expressam materialmente a raiva e o medo acumulados na atmosfera astral. A agressão gratuita, excessiva e traiçoeira é a outra cara da falsidade politicamente correta.
Os elementos descritos acima fazem parte da psicologia de cada indivíduo na etapa humana atual. Portanto, cabe estar vigilante mesmo quando o estudante de teosofia é fundamentalmente coerente na relação consigo mesmo. Ninguém está totalmente livre do desafio.
O cidadão de boa vontade pode ter em sua alma um núcleo central e dominante de amor à verdade, e talvez participe de um trabalho humanitário bem direcionado. Ainda assim, terá de observar a luta entre aparência e realidade em sua própria alma. Se disser a si mesmo que “já venceu esta luta”, estará apenas enganando a si mesmo.
Autorrespeito Reforça a Harmonia Interior
Cabe a cada um avaliar a si próprio.
Autoestima é antahkarana. É preciso respeitar a si mesmo para compreender o Caminho. E quando alguém não possui autoestima suficiente, a criação de um eu secundário, socialmente elogiável, não constitui alternativa válida.
Diante da necessidade de estar em paz profunda consigo mesmo, a meta em teosofia é encontrar o local silencioso da cura interna, ativando o ponto de equilíbrio que inclui todos os fatos e que compensa e purifica o ser passo a passo. Essa é uma tarefa da alma, isto é, do âmago do ser.
Quem estuda a pedagogia presente nas Cartas dos Mahatmas e nas Cartas dos Mestres talvez tenha um pouco mais de facilidade para enxergar o processo da clareza interior incondicional. Certamente terá um instrumento valioso nas mãos. Não existe na literatura esotérica algo comparável às Cartas, para aquele que deseja conhecer a visão dos Iniciados em relação a ensino e aprendizagem.
O duro confronto dos erros próprios e das falhas alheias é condição indispensável para a missão teosófica, e para que haja uma visão lúcida. No entanto, isso não basta: o desafio principal é construir. A atividade criativa depende de áreas e aptidões cerebrais muito diferentes das funções da consciência que rotulam, separam e criticam. Construir implica o uso de novas formas de inteligência, bastante diversas das “inteligências da demolição”.
Quando o estudante não tem algo que possa criticar, ou quando percebe que a discussão dos erros alheios nem sempre tem os efeitos positivos desejados, ele precisa aumentar o rigor interno e confrontar a resistência que boicota em seu próprio interior a força criativa da sabedoria.
O eu-bondoso do teosofista precisa transmutar aquele setor do eu-não-social que combate a caminhada para o conhecimento divino, e que faz isso à margem de tudo o que é verbalizado. O que permite avançar morro acima não é mostrar-se como sábio. Ao contrário, é deixar seus erros visíveis para que se curem, e criar hábitos acertados.
Não tem uma suprema importância a quantidade de tarefas que o peregrino faz por uma causa humanitária, mas sim a durabilidade, a estabilidade, a atenção, a sinceridade, a coragem e a humildade com que elas são feitas.
Não é pelo mero aumento das tarefas teosóficas que a alma evolui no sentido da integração do eu e da coerência emocional. Cabe zelar pela qualidade da motivação e não só pela força dela.
Quando o método da aprendizagem é acertado, as tarefas expressam uma devoção pela verdade impessoal. Deste modo o trabalho altruísta constitui um instrumento da autodisciplina e do aperfeiçoamento do eu inferior, na perspectiva da compreensão do tempo eterno, da lei universal, e do espaço infinito.
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