As Origens Pagãs e a Realidade
Atual da Maior Festa do Mundo Cristão
Helena P. Blavatsky
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Nota Editorial:
Incisivo em sua crítica ao ritualismo vazio,
o texto a seguir faz a defesa da verdadeira
compaixão universal. Extremamente atual no
século 21, o artigo foi publicado pela primeira vez na
edição de dezembro de 1879 da revista indiana “The
Theosophist”. Por esse motivo Helena Blavatsky se
refere, no primeiro parágrafo, a “nossos assinantes ocidentais”.
(CCA)
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Estamos atingindo aquela época do ano em que todo o mundo cristão se prepara para celebrar a mais notável das suas solenidades – o nascimento do Fundador da sua religião. Quando este texto chegar aos nossos assinantes ocidentais haverá festividades e alegria em todas as casas. No Noroeste da Europa e na América do Norte haverá azevinho e heras decorando cada casa, e as igrejas estarão enfeitadas com sempre-vivas; um costume que vem das práticas antigas dos Druidas, “para que os espíritos silvestres possam congregar-se nas sempre-vivas, e permanecer ao abrigo da geada até que haja menos frio”. Nos países católicos, grandes multidões convergem para as igrejas durante a noite da “véspera de Natal”, para saudar imagens de cera da divina Criança, e de sua mãe Virgem, em sua vestimenta de “Mãe Celestial”.
Para uma mente analítica, esta exuberância de rico ouro e de rendas, de cetim e veludo enfeitados com pérolas, e o berço coberto de joias, parecem de fato paradoxais. Quando pensamos na manjedoura pobre, velha e suja da estalagem judaica na qual, se devemos acreditar no Evangelho, o futuro “salvador” foi colocado ao nascer por falta de um abrigo melhor, não podemos deixar de suspeitar que, diante do olhar deslumbrado do devoto ingênuo, o estábulo de Belém desaparece completamente. Para dizê-lo de modo mais suave, esta pomposa exibição não combina muito bem com os sentimentos democráticos e com o desprezo verdadeiramente divino por riquezas materiais, que o “Filho do Homem” sentia – ele que não tinha “onde descansar sua cabeça”.
Isso só torna mais difícil para o cristão comum compreender a afirmação explícita de que “é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um homem rico entrar no reino dos céus” -; a menos que a frase seja vista como uma ameaça puramente retórica e sem valor real. A Igreja romana agiu com inteligência ao proibir severamente os membros das suas paróquias de ler ou interpretar os Evangelhos por si mesmos, e ao deixar, enquanto isso foi possível, que o Livro proclamasse as suas verdades em Latim – “a voz que prega no deserto”. Nisso, a igreja apenas seguiu a sabedoria das idades – a sabedoria dos antigos arianos, que também é “justificada pelos seus filhos”; porque, assim como o devoto moderno do hinduísmo não entende uma palavra de sânscrito, nem o parsi uma sílaba do Zend[1], assim também para o católico comum não há diferença alguma entre um texto em Latim e os símbolos hieroglíficos do Egito antigo. O resultado é que todos os três – o Alto Sacerdote Hindu, o Mobed zoroastrista e o Pontífice Católico Romano, obtêm oportunidades ilimitadas para produzir novas doutrinas religiosas a partir das suas próprias fantasias, para benefício das suas respectivas igrejas.
Para dar as boas-vindas a este grande dia, os sinos são tocados em sinal de felicidade à meia-noite por toda Inglaterra [2] e pelo continente. Na França e na Itália, depois da celebração da missa em igrejas magnificamente decoradas, “é costume que os participantes tenham acesso a uma recepção (reveillon), para que possam enfrentar melhor o cansaço da noite”, afirma um livro sobre os cerimoniais da igreja papal. Esta noite de jejum cristão nos lembra do Sivaratree dos seguidores do deus Shiva – o grande dia de tristeza e jejum, no décimo-primeiro mês do ano hindu. A diferença é que entre os seguidores de Shiva a longa vigília noturna é precedida e seguida de um jejum estrito e rígido. Não há reveillons ou soluções de meio-termo entre eles. É verdade que eles não passam de “pagãos” iníquos, e portanto o seu caminho até a salvação deve ser dez vezes mais difícil.
Embora seja agora universalmente celebrado pelas nações cristãs como o aniversário de nascimento de Jesus, o dia 25 de dezembro não era aceito como tal, inicialmente. O Natal, a mais móvel das datas de celebrações cristãs, era frequentemente confundido com a Epifania [3] e celebrado nos meses de abril e maio. Como nunca houve qualquer registro ou prova autêntica de sua identificação, seja em história secular ou eclesiástica, a seleção daquele dia permaneceu sendo opcional por longo tempo, e foi só no século IV que, estimulado por Cyril de Jerusalém, o papa (Julio I) ordenou aos bispos que fizessem uma investigação e chegassem finalmente a algum acordo quanto à data presumível do nascimento de Cristo. A escolha deles recaiu sobre 25 de dezembro -, e desde então tem sido comprovado que a escolha foi muito infeliz! Foi Dupuis, seguido por Volney, que desferiu os primeiros tiros contra esta data. Eles comprovaram, com dados astronômicos muito claros, que durante períodos incalculáveis antes da era cristã quase todos os povos antigos tinham celebrado o nascimento dos seus Deuses do Sol exatamente nesta data.
“Dupuis mostra que o signo celeste da VIRGEM E A CRIANÇA já existia vários milhares de anos antes de Cristo” – escreve Higgins em sua obra Anacalypsis. Já que Dupuis, Volney e Higgins foram considerados pela posteridade como infiéis e inimigos da Cristandade, parece ser correto citar, nesta questão, as confissões do bispo cristão de Ratisbone, “o homem mais sábio que a idade média produziu”, o dominicano Albertus Magnus. “O signo da Virgem celestial se eleva acima do horizonte no momento que nós fixamos como o do nascimento do Senhor Jesus Cristo”, diz ele, em “Recherches historiques sur Falaise, par Langevin prêtre”. Assim, Adônis, Baco, Osíris, Apolo, etc., todos nasceram em 25 de dezembro. O Natal ocorre exatamente no momento do solstício de inverno [4]; os dias são então mais curtos, e a Escuridão está mais presente que nunca na face da terra. Todos os deuses solares nascem anualmente naquela época; porque a partir daquele momento a sua Luz afasta cada vez mais a escuridão, a cada novo dia, e o poder do Sol começa a aumentar.
Seja como for, as festividades de Natal que foram celebradas pelos cristãos durante quase 15 séculos tiveram um caráter particularmente pagão. E isso não é tudo: mesmo as atuais cerimônias da igreja dificilmente podem escapar da crítica de que foram copiadas quase literalmente dos mistérios do Egito e da Grécia, celebrados em homenagem a Osíris e Horus, Apolo e Baco. Tanto Ísis como Ceres eram chamadas de “Virgens Sagradas”, e um BEBÊ DIVINO pode ser encontrado em cada religião “pagã”. Vamos agora traçar dois retratos do Feliz Natal. Um descreve os “bons e velhos tempos”. O outro descreve o estado atual da adoração cristã.
Desde os primeiros dias do seu estabelecimento como Natal, o dia foi visto ao mesmo tempo como uma comemoração sagrada e uma festividade da maior alegria: ela era dedicada igualmente à devoção e à diversão desregrada. “Entre as festanças da temporada de Natal estavam as chamadas festas de tolos e asnos, as saturnálias grotescas que eram chamadas de ‘liberdades de dezembro’, nas quais tudo o que fosse sério era parodiado, a ordem da sociedade era revertida, e o seu sentido de decência ridicularizado” – diz um compilador de crônicas antigas. “Durante a idade média, isso era celebrado através do espetáculo alegre e fantástico dos mistérios dramáticos, realizado por personagens em máscaras grotescas e roupas extravagantes. O show normalmente representava uma criança em um berço, rodeada pela Virgem Maria e por São José, por cabeças de touros, querubins, por Magos do Oriente (os Mobed de antigamente), e múltiplos ornamentos.” O costume de entoar cânticos durante o Natal, chamados de Hinos de Natal, visava relembrar as canções dos pastores na Natividade. “Os bispos e o clero frequentemente se juntavam à população em tais cânticos, e as canções eram acompanhadas por danças e pela música de tambores, guitarras, violinos e órgãos….” Podemos acrescentar que até os tempos atuais, durante os dias que antecedem o Natal, tais mistérios estão sendo encenados, com bonecos e marionetes, no sul da Rússia, na Polônia e na Galícia; e são conhecidos como Kalidowki. Na Itália, menestréis da Calábria descem das suas montanhas até Nápoles e Roma, e lotam as capelas da Virgem-Mãe, homenageando-a com sua música animada.
Na Inglaterra, os festejos costumavam começar na véspera de Natal e iam frequentemente até a Candelária (2 de fevereiro) [5], sendo que todos os dias eram dias santos até a décima-segunda noite (6 de janeiro). Nas casas de grandes nobres era nomeado um “senhor do desregramento” ou “abade da não-razão”, cujo dever era cumprir o papel de palhaço. “A despensa ficava cheia de frangos, galinhas, perus, gansos, patos, carne bovina, carne de carneiro, carne de porco, tortas, pudins, nozes, ameixas, açúcar e mel.” (. . . .) “Um fogo brilhante, feito de pedaços grandes de lenha, o principal dos quais era chamado de ‘lenha de Natal’ e era capaz de queimar até a véspera da Candelária, era mantido em ambiente seguro; e a abundância era compartilhada pelos arrendatários do senhor, em meio a música, encantamentos, quebra-cabeças, hotcockels [6], brincadeira do tolo, flores cabeça-de-dragão, piadas, risos, desafios com perguntas e respostas, prendas penhoradas nos jogos, e danças.”
Em nossos tempos modernos, os bispos e o clero já não se somam à população que canta e dança, e as “festas de tolos e asnos” são ensaiadas mais na sagrada privacidade do que diante de perigosos observadores de olhos atentos. No entanto as festas de comida e bebida são preservadas em todo o mundo cristão; e sem dúvida ocorrem mais mortes súbitas provocadas por gula e intemperança durante os feriados de Natal e a Páscoa do que em qualquer outra época do ano. A cada ano que passa, a adoração cristã se limita, cada vez mais, a uma falsa ostentação. A ausência de coração em tais fingimentos tem sido denunciada inúmeras vezes, mas pensamos que isso nunca foi feito com um toque de realismo mais emocionante do que em uma encantadora história-de-sonhos publicada no “New York Herald” perto do último Natal [7]. Um homem idoso, que presidia uma reunião pública, disse que aproveitaria a oportunidade para relatar uma visão que ele havia tido na noite anterior. “Ele pensou que estava de pé no púlpito da mais bela e magnífica catedral que ele jamais havia visto. Diante dele estava o sacerdote ou pastor da igreja, e a seu lado estava um anjo com uma tabuleta e um lápis na mão, cuja missão era registrar cada ação devocional ou oração que ocorresse em sua presença e se elevasse como uma oferenda aceitável até o trono de Deus. Cada banco da igreja estava cheio de devotos de ambos os sexos. A mais sublime música que ele jamais ouvira encheu o ar com sua melodia. Todos os belos serviços ritualísticos da igreja, inclusive um sermão insuperavelmente eloquente de um hábil sacerdote tinham já ocorrido, e no entanto o anjo registrador não fez anotação alguma em sua tabuleta! Ao final, a congregação foi dispensada pelo pastor com uma longa oração de belas frases, seguida por uma bendição, e no entanto o anjo não fez um só gesto!”
“Observado ainda pelo anjo, o orador saiu pela porta da igreja que ficava atrás da congregação ricamente vestida. Uma pobre mulher esfarrapada permanecia na sarjeta da calçada, estendendo sua mão pálida e desnutrida e silenciosamente pedindo esmolas. Enquanto passavam por ali os devotos ricamente vestidos, eles se desviavam da pobre Madalena. As damas mantinham à distância as suas sedas, os seus mantos enfeitados de joias, para que não pudessem ser contaminados pelo toque da mão dela.”
“Neste momento um marinheiro bêbado aproximou-se oscilando pelo outro lado da calçada. Quando ele chegou à altura da pobre menina abandonada, ele cambaleou atravessando a rua até onde ela estava e, tirando do bolso algumas moedas de pequeno valor, colocou-as na mão dela, enquanto dizia:
‘Aqui, pobre miserável abandonada, pegue isto!’
Uma radiância celeste agora iluminou a face do anjo registrador, que imediatamente anotou o ato de simpatia e compaixão do marinheiro em sua tabuleta, e afastou-se considerando-o um sincero sacrifício a Deus.”
Alguém dirá que esta é uma materialização da história bíblica do julgamento de uma mulher culpada de adultério. Pode ser que sim; no entanto, a história descreve magistralmente a situação atual da nossa sociedade cristã.
De acordo com a tradição, na véspera do Natal, os bois podem ser sempre encontrados repousando sobre seus joelhos, como se estivessem em oração e devoção, e “havia um famoso espinheiro no pátio do mosteiro de Glastonbury, que sempre dava botões de flor no dia 24 e florescia no dia 25 de dezembro”; fato que, considerando que o dia fora escolhido ao azar pelos Padres da igreja, e que o calendário foi alterado do sistema antigo para o novo, mostra uma perspicácia notável, tanto por parte dos bois como por parte do vegetal! Há também uma crença tradicional, preservada até nós por Olaus, o arcebispo de Upsala, de que, no festival do Natal, “os homens que vivem nas regiões frias do Norte são súbita e estranhamente metamorfoseados em lobos; e que uma gigantesca multidão deles se encontra em um lugar escolhido e expressa tamanha raiva da humanidade que esta sofre mais com os seus ataques do que jamais poderia sofrer com ataques dos lobos naturais.”
Metaforicamente falando, este parece ser o caso com os homens, e mais do que nunca agora, e especialmente nas nações cristãs. Não há necessidade de esperar pela véspera de Natal para ver nações inteiras transformadas em “feras selvagens” – especialmente em tempos de guerra.
(Theosophist, Dezembro 1879)
NOTAS:
[1] Parsis são os seguidores do zoroastrismo na Índia. “Zend” é a versão da “Avesta” – a principal escritura sagrada dos parsis – no idioma persa clássico, o “pálavi”, falado nos séculos três a nove da era cristã. A escritura persa é chamada hoje de “Zend-Avesta”. (CCA)
[2] A Índia era colônia inglesa na época. (CCA)
[3] A epifania ou Dia de Reis é comemorada hoje em seis de janeiro. (CCA)
[4] Inverno – no hemisfério norte. (CCA)
[5] Candelária; festa da Purificação da Virgem. No Brasil, também é o dia de Iemanjá, a deusa das águas. (CCA)
[6] Hotcockels – jogo infantil tradicional em que uma criança, com os olhos cobertos, deve adivinhar quem bateu nela. (CCA)
[7] Último Natal – isto é, na época do Natal de 1878. (CCA)
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O texto acima foi traduzido de “Theosophical Articles”, H. P. Blavatsky, volume III, Theosophy Company, 500 pp., Los Angeles, 1981, pp. 58-62. Título original do artigo: “Christmas Then and Christmas Now”.
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