Há uma Sintonia Interior Entre
a Alma do Ser Humano e o Mar
Carlos Cardoso Aveline
Deixei de lado, agora, toda preocupação pessoal. Estou caminhando pela praia sob o sol do outono, e posso sentir a força do vento. É aqui, na beira do mar, que os restos da civilização consumista se encontram com a eterna imensidão da vida. Caminho livremente sobre a espuma das ondas – mas há copos vazios de iogurte avançando e recuando na linha da maré. A beleza do pôr-do-sol ilumina, generosamente, um vidro de geleia abandonado; e uma garça branca conclui um voo mágico ao pé de uma lata de óleo de milho enferrujada. Mas a imensidão do oceano absorve sem distinção tanto o lixo quanto os sentimentos de indignação que alguém possa ter. O mar é maior que todas as emoções pessoais, generosas ou não. Porque aqui o ser humano busca e encontra sua renovação interior. Afinal, o oceano físico é um símbolo – e uma porta – para a percepção de um outro oceano maior ainda, o próprio cosmo.
Nasci junto ao mar. Talvez seja por isso que nunca tive dificuldade em compreender que este planeta é feito, fundamentalmente, de água. No hemisfério sul, onde interrogo com um ar ausente a espuma das ondas, há somente 19% de terra; 81% da superfície são cobertos pelo mar. O hemisfério norte é bem menos aquático: 39% de terra e 61% de água. A média planetária fica em 71% de água.
Estou conversando com as ondas em uma praia jovem, que não tem mais de cinco ou seis mil anos de idade. O mar, no entanto, é tão velho quanto a Terra que conhecemos: é nele que surgiu a vida, há cerca de quatro bilhões de anos, segundo diz a ciência atual. Além do oceano físico deste planeta, há também um oceano primordial – segundo a sabedoria dos antigos – que é origem do próprio universo conhecido. Como dizem as Estâncias de Dzyan, um documento de antiguidade imemorial, a semente do universo cresceu nos abismos do Oceano da Vida. “A escuridão irradia a luz, e a luz lança um raio solitário na profundeza da mãe”, afirma a obra, publicada por Helena Blavatsky no século 19.[1] Os Vedas contêm um poema em que a origem do mundo é relacionada com as águas primordiais:
“Não havia coisa alguma; o céu claro e distante
Não existia, nem havia o amplo telhado celestial, espalhado ao alto.
O que é que encobria tudo? O que o abrigava? O que o ocultava?
Seria o insondável abismo das águas?
Não havia a morte – porém nada havia de imortal.
Não existia diferença entre o dia e a noite;
Só Aquilo que é Uno respirava sem respirar, sozinho,
E desde então nada jamais existiu fora Daquilo.
Havia escuridão, e no início tudo estava velado
Em trevas profundas -; um oceano sem luz.
O germe ainda coberto pela casca
Despertou, como natureza una, – devido ao intenso calor.
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Quem sabe o segredo? Quem o proclamou aqui?
De onde veio, de onde veio – esta criação múltipla?
Os próprios Deuses só passaram a existir mais tarde.
Quem sabe de onde surgiu, esta grande criação?
Aquilo, de onde veio esta grande criação,
O Mais Elevado Vidente que está no mais alto céu,
Só Ele sabe a resposta -; ou talvez nem Ele saiba.” [2]
Para o taoismo, o mar ensina o funcionamento da Lei eterna. Laotse ensina que “o Tao no mundo pode ser comparado aos rios que desaguam no mar”. [3]
Gautama Buda, quase contemporâneo de Laotse, ensinou na Índia algo semelhante, segundo o famoso poema “A Luz da Ásia”:
“A maré incessante da existência corre sem interrupção, sempre mudando, como um rio cujas ondas se sucedem lentas ou rápidas, e que são as mesmas – embora diferentes – desde sua longínqua nascente até o mar, onde vertem.” E o sermão do Senhor Buda prossegue, descrevendo o ciclo da água em nosso planeta:
“O mar, evaporando-se ao sol, restitui ao rio suas pequenas ondas perdidas, sob a forma de ligeiras nuvens que gotejarão do alto das montanhas e correrão sem trégua e sem repouso. E isto é suficiente para compreender as coisas aparentes, os Céus, as Terras, os mundos e as trocas que o modificam, a Roda poderosa que gira, movida pela luta e pela força, sem que ninguém possa detê-la nem ir em sentido inverso ao seu movimento.” [4]
O mar parece representar, no plano físico, o princípio eterno de onde tudo parte e para onde tudo retorna. O oceano, como unidade indiferenciada e primordial, é ao mesmo tempo fonte e destino das águas e dos seres.
A ponta branca de espuma da água cobre a areia, avançando e recuando ciclicamente – assim como o oceano da sabedoria universal inspira, periodicamente, a mente humana em evolução.
Uma garça branca pequena observa-me à meia distância, mantendo as pernas altas acima das ondas do mar que não chegam a cinco centímetros de profundidade. Assim ela mantém seco seu corpo leve, planejado para voar. Acompanhando o movimento das águas, a garça avança e recua alguns passos, enquanto vigia o solo molhado em busca de algum alimento vivo e saboroso. Observo sem pressa, imerso no som e no movimento das águas. Estou na praia de Atlântida, no município de Xangri-lá, litoral gaúcho. A cada 40 ou 50 metros, há uma garça bem posicionada e atenta. O mais elegante no voo da garça é o modo como, para voltar ao solo, fica planando com as asas imóveis e descreve um semicírculo perfeito antes de pousar.
Uma garça vizinha, depois de fazer um voo com estas características para afastar-se alguns metros de mim, me observa agora e aceita a minha presença, enquanto tomo notas em meu caderno. Sigo seu exemplo e recuo alguns passos, evitando o avanço de uma onda mais forte. Em mais de um sentido, ela e eu somos tocados pela mesma maré.
Mais brincalhões que as garças, bandos de pássaros menores, os maçaricos, fazem evoluções no ar que despertariam inveja em pilotos da Força Aérea Brasileira. Os maçaricos também andam pelo chão, procurando alimento vivo com suas patas, longas para seu tamanho. Um minuto atrás, vi as evoluções de um pequeno pássaro. Ele voava parado, contra o vento, depois mergulhava e saía voando a favor do vento, descrevendo círculos. Simplesmente brincava com o ar, seu elemento preferido na natureza.
A zoóloga Rachel Carson, especializada em biologia marinha, produziu nos anos 1950 alguns livros hoje clássicos sobre o mar. Embora de cunho técnico, sua obra revela uma admirável maturidade interior diante da natureza. “As praias arenosas”, escreveu Rachel, “são um exemplo vivo da evolução deliberada e sem pressa do planeta”. Durante longas eras geológicas, o Atlântico tem avançado e recuado sobre as costas das Américas. Todas as praias brasileiras participam deste processo permanente de construção geológica, cuja escala de tempo está muito além das preocupações humanas de curto prazo. “A areia é uma substância bonita, misteriosa e infinitamente variável: cada grão, na praia, é resultado de processos que surgiram no começo da vida, ou na origem do próprio planeta”, escreveu a norte-americana Rachel. “Para compreender a praia não basta catalogar suas formas de vida”, explica. “A compreensão só surge quando, estando na praia, podemos perceber os longos ritmos da terra e do mar, que esculpiram as formas terrestres e produziram a rocha e a areia; quando percebemos interiormente a força da vida batendo nas praias, cega e inexoravelmente, pressionando por uma possibilidade de viver em terra firme.” [5]
A praia, para Rachel, é um mundo antigo porque desde o início do planeta sempre houve um ponto de encontro entre terra e mar. Mas é um processo de criação contínua, onde o impulso da vida é incansável. “Cada vez que me aproximo da praia”, escreveu, “ganho mais consciência da sua beleza e significado interior. Um dia, esta costa rochosa sob meus pés foi um local arenoso; e de novo, em algum futuro distante, as ondas terão moído estas rochas e terão devolvido a costa a seu estado anterior. Em todas estas praias há ecos do passado e do futuro: do fluxo do tempo, apagando e guardando tudo o que veio antes; são ecos dos ritmos eternos do mar, das marés, a batida das ondas, a pressão das correntes marítimas … é a corrente da vida fluindo como qualquer corrente oceânica, do passado para o futuro.”
Na praia reúnem-se os quatro elementos da natureza: a terra, a água, o ar – que oxigena a água e forma as ondas – e o fogo, representado pelo Sol, que aquece e dá vida ao ecossistema. A luz solar possibilita a existência do fitoplâncton, a vida vegetal que fica suspensa na água do mar e é a base de toda a cadeia alimentar. Sempre que o mar constrói uma nova costa, como durante os últimos milênios, no lugar em que caminho agora, surgem ondas de criaturas vivas na praia, disputando território e estabelecendo suas colônias. “Contemplando a vida da praia”, afirmou Rachel Carson, “temos uma percepção inquietante de alguma verdade universal que está um passo além da nossa compreensão. É o mistério último da própria vida.”
Nesta praia de Xangri-lá há numerosas cabines de salva-vidas, desocupadas nesta época do ano. Suas formas de pirâmide, com a base situada a dois metros e meio acima do solo, chamam atenção pela beleza. São um local perfeito para meditar e contemplar o imenso mar e céu azuis. Estou escrevendo sentado sob a cúpula da cabine piramidal. Um caminhante idoso fica alguns momentos imóvel, a poucos metros de distância, fazendo exercícios de respiração profunda, erguendo e abaixando os braços esticados relaxadamente, enquanto olha a espuma das ondas contra a linha do horizonte. Ele parece estar consciente de que o contato com o mar pode ser uma fonte de bênçãos.
A melhor hora para meditar aqui é ao amanhecer e ao pôr-do-sol. Sentado com a coluna ereta e as emoções em paz, é possível participar das energias presentes em uma forma geométrica perfeita, sentindo a vitalidade da beira do mar. A pirâmide aponta para o céu a partir de uma base firmemente apoiada sobre o solo. Cada ser humano pode ser, à sua maneira, uma pirâmide. Uma garça engole pequenos mariscos, com um jeito distraído, como se pensasse em outra coisa. O Sol ainda está presente na cena. Mas sua luz, dourada neste entardecer, vem de longe. Ela demora oito minutos e meio para percorrer os 150 milhões de quilômetros entre o Sol e a camada superior da nossa atmosfera – onde os raios ultravioleta são interceptados pela camada de ozônio – e, finalmente, iluminar a garça que procura moluscos na beira da praia com seu bico certeiro.
Um elemento significativo do mar são as ondas. Em alto-mar, há ondas que percorrem nove mil quilômetros ou mais. Mas a água que forma a onda em alto-mar não se movimenta com ela: a onda é uma forma geométrica que se reproduz ao longo do espaço, transmitindo determinada vibração.
“Cada partícula de água descreve uma órbita circular ou elíptica, com a passagem da onda, mas volta quase exatamente à sua posição original”, explicou Rachel Carson. A maior parte das ondas é causada pela ação dos ventos sobre as águas. “As ondas jovens, formadas há pouco pelo vento, têm forma aguda e estrepitosa”, escreveu ela, tratando as ondas como seres vivos. E ainda: “São muitos os incidentes na vida de uma onda. Quanto durará, até onde irá, de que maneira acabará – tudo isto é determinado, em grande parte, pelas condições que encontra em sua marcha pelo mar.” [6]
Mesmo depois da volta à cidade ainda posso instalar-me mentalmente na cabine-pirâmide, ou caminhar em imaginação pela beira da praia olhando o desfile das ondas que vêm morrer, suavemente, aos pés dos pássaros. Aproveito para pensar, demoradamente, nos versos com que Edwin Arnold encerrou sua obra “A Luz da Ásia”, sobre a vida de Gautama Buda:
“O orvalho está no lótus:
Ergue-te, grande Sol!
E levanta minha folha, e lança-me na onda.
OM Mani Padme Hum –
O Sol já nasce:
A gota de orvalho toca o mar brilhante.” [7]
Ou, como escreveu o técnico em ecologia marinha norte-americano Peter Weber:
“O tempo e a evolução nos distanciaram da origem nos mares, mas ainda carregamos traços da nossa herança de água salgada em nosso sangue. A fascinação quase universal do ser humano pela eterna procissão de ondas, o cheiro de água salgada e o grito dos pássaros marinhos reflete uma ligação psicológica profundamente estabelecida entre homem e mar.”[8]
Esta sintonia interior entre o ser humano e o mar ocorre porque algo em nossa consciência percebe, mesmo vagamente, que os oceanos estão relacionados com a essência da vida presente em cada um de nós e no planeta Terra.
NOTAS:
[1] “A Doutrina Secreta”, de Helena P. Blavatsky, edição original, tradução da Loja Independente de Teosofistas, Parte I do Volume I, página 68.
[2] Poema transcrito em “A Doutrina Secreta”, obra citada, Parte I do Volume I, p. 65.
[3] Veja o capítulo 32 de “O Tao Teh Ching” na versão de Lin Yutang.
[4] “A Luz da Ásia”, Edwin Arnold, Livro Oitavo, Ed. Pensamento.
[5] “The Edge of the Sea”, Rachel Carson, Houghton Mifflin Co., Boston, EUA, 1955.
[6] “O Mar que Nos Cerca”, Rachel Carson, Cia. Editora Nacional, São Paulo, tradução de Brenno Silveira.
[7] “A Luz da Ásia”, obra citada, e mais especialmente sua versão original “The Light of Asia”, Edwin Arnold, Theosophy Company, Los Angeles, 1977, 238 pp., além de outras 24 pp. de um apêndice com comentários sobre a obra.
[8] “The State of the World – 1994”, Peter Weber e outros autores, Worldwatch Institute, Washington, EUA.
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O texto “O Oceano Primordial” reproduz o capítulo primeiro do livro “A Vida Secreta da Natureza”, de Carlos Cardoso Aveline (Ed. Bodigaya, Porto Alegre, 2007), e foi publicado nos websites associados dia 25 de agosto de 2021.
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Leia mais:
* Os Banhados do Rio dos Sinos (livro de 87 páginas).
* O Rio Grande do Sul e a Ecologia (livro de Henrique Luiz Roessler).
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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