Uma Tarefa de Síntese Entre Céu e Terra
Carlos Cardoso Aveline
Obra de Oscar Pereira da Silva, “Desembarque de Cabral
em Porto Seguro”, mostra cena do descobrimento do Brasil
em Porto Seguro”, mostra cena do descobrimento do Brasil
Cada nação moderna foi criada – assim como as nações antigas – em torno de um arquétipo ou sonho de sociedade perfeita. Antigamente, atribuía-se aos reis funções divinas. Desde a revolução francesa, o modelo de perfeição social passa pelas ideias de liberdade, igualdade e fraternidade.
O Brasil não é exceção. Assim como as outras colônias europeias do Novo Mundo, o país surge desde o primeiro momento sob o signo de uma forte expectativa utópica por parte dos “descobridores”.
Ao chegar pela primeira vez às terras do Novo Mundo, os europeus do final do século 14 e começo do século 15 esperavam − e temiam − estar desembarcando literalmente no Paraíso terrestre. Sérgio Buarque de Holanda abordou o tema em uma obra em que estuda a influência do mito do paraíso na história do Brasil. Ele escreveu:
“Sabe-se que para os teólogos da Idade Média o Paraíso Terreal não representava apenas um mundo intangível, incorpóreo, perdido no começo dos tempos, nem simplesmente alguma fantasia vagamente piedosa, e sim uma realidade ainda presente em sítio recôndito, mas porventura acessível. Desenhado por numerosos cartógrafos, afincadamente buscado pelos viajantes e peregrinos, pareceu descortinar-se, enfim, aos primeiros contatos dos brancos com o novo continente. (…) Não admira que, em contraste com o antigo cenário familiar de paisagens decrépitas e homens afanosos, sempre a debater-se contra uma áspera pobreza, a primavera incessante das terras recém-descobertas deve surgir aos seus primeiros visitantes como uma cópia do Éden. Enquanto no Velho Mundo a natureza avaramente regateava suas dádivas, repartindo-as por estações e só beneficiando os previdentes, os diligentes, os pacientes, no paraíso americano ela se entregava de imediato em sua plenitude, sem a dura necessidade – sinal de imperfeição – de ter de apelar para o trabalho dos homens. Como nos primeiros dias da Criação, tudo aqui era dom de Deus, não era obra do arador, do ceifador ou do moleiro”. [1]
Sim, o Brasil era uma terra abençoada por natureza.
Mas o capitalismo mercantil e a economia colonial se encarregaram de deixar a um lado, como uma experiência marginal, os sonhos utópicos. As culturas indígenas passaram a ser massacradas. A natureza era tratada, na prática, como um amontoado de recursos naturais que jamais se esgotariam. Nesse contexto difícil, as Missões Jesuíticas reuniram índios guaranis em uma sociedade solidária em território que hoje pertence a Argentina, Paraguai e Brasil. As Missões foram uma experiência histórica contraditória. Nos séculos 17 e 18, essa “República Comunista dos Guaranis” foi um ensaio utópico complexo, tendo sido utilizado pelos jesuítas para seu próprio projeto autoritário de poder mundial teocrático.
A Inconfidência Iluminada
A busca da sociedade solidária ganha novas forças na segunda metade do século 18, com a ideia de lutar pela independência do Brasil.
O movimento da Inconfidência é criado e alimentado pelos poetas mineiros do século 18, que recebiam, àquela altura, três influências principais:
1. Eles estavam influenciados pelo iluminismo europeu, cujo enfoque não era apenas filosófico. Uma forte consciência social, crítica e agressivamente irônica, como a de Voltaire, aparece, por exemplo, nas famosas Cartas Chilenas de Tomás Antônio Gonzaga.
2. Por outro lado, havia a forte influência política da revolução norte-americana de 1776. Tudo parecia possível.
3. Finalmente, estava presente a inspiração do arcadismo, uma tendência cultural europeia que possuía forte sabor grego clássico, incluindo o culto à natureza.
A Arcádia é uma região montanhosa localizada no Peloponeso, uma península no sul da Grécia. Na Arcádia vivia o deus dos bosques e da natureza – Pã. É uma região dedicada à poesia e às artes. Conta a tradição que ali nasceu Zeus, o chefe do Olimpo.
A Enciclopédia Britânica de 1967 destaca que essa região montanhosa e seu povo não chegavam à costa. O povo vivia geograficamente isolado do resto da Grécia (característica que no contexto brasileiro se pode atribuir, pelo menos em parte e no sentido cultural, às cidades históricas de Minas Gerais). O isolamento em região montanhosa e a harmonia com a natureza – a vida pastoril – colaboraram para que a poesia clássica grega e romana descrevessem a Arcádia como um paraíso.
O arcadismo surge em Roma em 1690 e se expressa através de sociedades literárias cujos poetas priorizam descrever a vida simples do campo. No século 18, o arcadismo tinha grande força no mundo português.
Assim, na poesia Inconfidente da segunda metade do século 18 os temas clássicos são uma prioridade. Os deuses gregos são presenças constantes. A Arcádia é o Paraíso, e o Brasil é uma estranha mistura de paraíso indígena com mercantilismo europeu. A ideia da independência surge mais como um sonho de poetas do que como um projeto político-militar maduro. Esse sonho é, de um lado, um exercício literário, uma licença poética, um desdobramento do esforço criativo no mundo da poesia. De outro lado, ele é uma revolta popular específica contra o abuso na cobrança de impostos.
Quando ocorre a chamada Inconfidência, espera-se de algum modo que a Independência – assim como a Nova Jerusalém do Novo Testamento – desça dos céus espontaneamente e sem necessidade de muito esforço.
A iluminação da mente resultava na tentativa espontânea de iluminar a sociedade. A consciência, expandida, tinha a coragem de sonhar com a utopia da solidariedade e da liberdade dos povos. Nada melhor que isso. Só faltava maturidade política e estratégica.
A Arcádia brasileira não criou a independência, e aparentemente fracassou, mas foi ali que nasceu de certo modo a alma brasileira madura. Foi na região montanhosa das Minas que surgiu o sonho da independência – e, desde aquele momento, a independência formal passou a ser uma questão de tempo.
Mais de 200 anos depois, ainda temos pelo menos duas grandes lições a aprender com a experiência dos Inconfidentes. Uma delas é o fato de que uma sociedade sustentável deve, sim, surgir dos nossos sonhos. Deve ser resultado da expansão da nossa consciência em direção ao infinito. Mas, ao mesmo tempo – e essa é uma segunda lição –, o sonho precisa ter sua âncora e seu alicerce na vida material cotidiana, com um projeto durável, bem feito, estrategicamente maduro, cujos pés estejam bem plantados no chão. Isso não foi possível em 1789 em Vila Rica do Ouro Preto, mas é possível agora em qualquer lugar do Brasil.
Na primeira parte do século 21, a tensão criadora do sentimento utópico continua mais viva do que nunca no povo brasileiro. Ela provoca fatos materiais significativos, como a economia solidária e outras ações de renovação cultural. Mas ela atua em pequena escala e sem chamar grande atenção. Isto tem de ser assim porque, afinal, tudo o que será grande – se for inovador e pretender durar – deve começar em uma dimensão modesta, observando e corrigindo seus erros e avançando gradualmente.
NOTA:
[1] “Visão do Paraíso”, de Sérgio Buarque de Holanda, Editora Brasiliense, SP, quarta edição, 367 pp., ver pp. IX e X, no prefácio à segunda edição.
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