O Notável Avanço da Ciência Permite Matar
Milhões de Seres Humanos em Pouco Tempo
 
 
Visconde de Figanière
 
 
 
Profeticamente, Figanière usa a imagem de uma briga de gatos de Kilkenny
para resumir a atual situação humana: a imagem é perfeita para o século 21.
 
 
 
Creio que foi Paul Émile quem certa vez disse que o talento é tão necessário para servir um banquete, quanto para formar um exército. Se ele falou a verdade, a ideia ainda deve ser válida hoje; a questão precisa ser resolvida entre os generais e os mordomos.
 
Sem dúvida, concordaremos em reconhecer que o talento não depende do progresso; e que se todas as cozinhas da cristandade se transformassem em escolas, a proporção entre o talento e o nível comum permaneceria igual, ou seja, o talento ainda seria a exceção. O progresso ocorre em ideias e processos materiais.
 
A tese de que a gastronomia e a arte do banquete progrediram, desde a época de Luculle, é algo que não se pode admitir de modo algum. Mas ninguém ousaria negar o progresso na guerra.
 
É apropriado registrar aqui, entre parênteses, que há menos de um quarto de século [1] os cristãos, ou pelo menos a grande maioria deles, tinham plena convicção de que o uso da guerra estava chegando ao fim. Uma longa paz de quarenta anos os fez sonhar com a esperança de que a doutrina de Cristo, o bem-estar, o progresso e a força moral das ideias modernas tornassem a guerra cada vez mais difícil, cada vez menos provável, ao ponto de que um partido da paz foi fundado com o objetivo de estabelecer a harmonia e a amizade entre todas as potências, e promover o desarmamento geral. Mas a ilusão não durou muito; no espaço dos últimos vinte anos, vimos cinco grandes guerras na Europa, sem falar na América do Norte e na América do Sul, na Índia, na China, na Abissínia e em outras partes do mundo a que os cristãos tiveram acesso. As pessoas estão lutando pelas armas neste momento na Espanha e todas as nações estão se armando até os dentes!
 
Como o homem não pode, portanto, ser curado de sua inclinação para a guerra, a ciência se comprometeu a fornecer-lhe meios “aperfeiçoados”, permitindo-lhe satisfazer essa paixão inata. Essa melhoria está avançando aos trancos e barrancos, e seria difícil prever até que ponto de excelência a arte de matar uns aos outros ainda avançará. Já no século 18 o historiador Gibbon dizia a respeito da pólvora:
 
“Se compararmos o rápido progresso desta perniciosa descoberta com a lenta e laboriosa marcha da razão, da ciência e das artes da paz, o filósofo, conforme seu estado de espírito, irá rir ou chorar sobre a loucura da raça humana.”
 
– O que ele diria hoje ao ver os fuzis automáticos, as metralhadoras, e os canhões Krupp? Graças à rapidez dos meios de transporte e comunicação, a estratégia militar vem fazendo progressos que têm o seu lado útil mesmo para mais além dos interesses puramente bélicos. O moderno sistema de ambulâncias e a instituição desta associação verdadeiramente cristã que é a Cruz Vermelha constitui, como todos reconhecem, um motivo de legítimo orgulho para os europeus, e eles dirão talvez que as suas invenções para organizar e acelerar massacres apresentam, ao mesmo tempo, um lado humanitário e civilizador.
 
Civilizador, uma vez que a propriedade é poupada, o tempo e as despesas são economizados. Esses objetivos são civilizadores. Para conseguir isso, a campanha militar deve ser curta. Portanto, o objetivo em vista deve ser o extermínio do inimigo o mais rápido possível. A conclusão é inquestionavelmente muito lógica, e a ciência profunda dos cristãos mostrou-se à altura do problema. Enquanto antigamente uma guerra exigia várias campanhas, hoje ela é decidida por algumas batalhas, graças aos meios de massacrar homens à razão de 50.000 por hora. Viva o progresso!
 
Quanto ao seu lado humanitário, pergunto-lhe se não é melhor derrubar cem mil homens de uma só vez, com doze disparos por minuto, dos quais pelo menos seis tiros acertam, e depois ir para casa para limpar a sua arma, ao invés de estar em marchas e contramarchas por um ano inteiro, observando um ao outro, evitando um ao outro, depois entrando em confronto e recarregando, disparando tiros um no outro, 80% dos quais erram o alvo, tudo com uma dor infinita e resultados relativamente mínimos, conforme aconteceu no tempo de nossos pais? E não é mais caridoso – com um único tiro certeiro de canhão – lançar um navio encouraçado ao abismo sem muito barulho e levando junto com ele toda a sua carga humana, ao invés de usar as velhas técnicas de abordagem de navios inimigos, para depois ter de lutar corpo a corpo? Ou usar a técnica de tomar a proa do navio inimigo usando ganchos, içá-lo para fora da água para fazê-lo cair de volta ao mar, como o tolo sonhador Arquimedes fez em Siracusa, dando assim aos nadadores uma chance de escapar?
 
Quando se trata de concluir uma tarefa penosa, certamente é melhor terminá-la o antes possível. Além disso, a era da ciência já deixou para trás a era da cavalaria.
 
Grandes rendimentos com menos problemas e a um custo menor, essa é uma regra canônica do progresso moderno. Economia de tempo e dinheiro é uma exigência da civilização. A indústria também precisa viver; e, para citar apenas um dos belos resultados da guerra, grandes batalhas adubam o seu território a ponto de, muitas vezes, durante séculos, não ser preciso jogar mais estrume nela!
 
As nações renovam seus armamentos uma vez a cada dez anos; vamos reduzir este intervalo sem dúvida pelo menos para cinco anos, pois as invenções se sucedem com perfeição progressiva e rápida, em benefício dos exércitos em geral, e dos inventores e dos fabricantes em particular. O processo só terminará quando a perfeição chegar ao ponto de garantir a aniquilação mútua, conforme o destino dos dois gatos de Kilkenny [2], que terminaram sua batalha engolindo um ao outro.[3] De qualquer forma, viva o progresso.
 
NOTAS:
 
[1] Este texto do Visconde de Figanière foi publicado em 1875, o mesmo ano em que o movimento teosófico foi fundado. Um quarto de século antes seria 1850. (CCA)
 
[2] Gatos de Kilkenny. Referência a um conto que narra uma briga de gatos durante a qual os dois gatos desapareceram, deixando no local apenas as suas caudas. A expressão indica um conflito em que há destruição mútua total. Kilkenny é uma cidade na Irlanda. (CCA)
 
[3] Escrita na década de 1870, a frase irônica do Visconde antecipa o conceito de “Mútua Destruição Assegurada”, no caso de uma guerra nuclear. Cabe registrar que o dilema da Mútua Destruição Assegurada surgiu depois que os Estados Unidos destruíram em 1945 as cidades inteiras de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, como meio de defender a democracia e os direitos humanos contra a violência de um regime político considerado autoritário, quando o Japão já estava militarmente derrotado. As guerras do Vietnam, do Iraque e do Afeganistão foram outros exemplos notáveis de defesa da democracia e da liberdade por parte dos Estados Unidos, país profundamente cristão. (CCA)
 
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O texto acima foi publicado neste website teosófico dia 18 de julho de 2023. Trata-se de uma tradução do francês. Consiste do capítulo X do livro do Visconde de Figanière intitulado “Lettres Japonaises”, subtítulo “Sur la Civilisation en Europe Comme un Produit du Christianisme et la Voie Qu’elle Suit Actuellement”; ou “Cartas Japonesas”, subtítulo “Sobre a Civilização na Europa como Produto do Cristianismo e o Rumo que Ela Segue Atualmente”, páginas 83 a 90. A obra “Lettres Japonaises” está disponível nos websites da Loja Independente de Teosofistas: clique aqui para vê-la.
 
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Clique para ler outros textos do Visconde de Figanière (1827-1908), em vários idiomas. Amigo e discípulo pessoal de Helena Blavatsky, Figanière é o grande pioneiro do movimento teosófico em língua portuguesa. Constitui uma referência para o trabalho da Loja Independente de Teosofistas.
 
Você está convidado a imprimir os textos que estuda dos websites associados: com frequência a leitura em papel permite uma compreensão mais profunda. Ao estudar um texto impresso, o leitor pode sublinhar e fazer comentários manuscritos nas margens, ligando o texto à sua realidade concreta. 
 
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”. 
 
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