O Legislativo Não Pode
Funcionar Como uma Fábrica de Leis
Michel Temer
Nota Editorial de Agosto de 2016:
O problema do excesso de leis está longe de ser recente. Num livro publicado no Rio de Janeiro em 1866, o pensador e teosofista Visconde de Figanière escreveu:
“Não é para desejar-se grande cópia [quantidade] de leis, mas sim o máximo respeito pelas que se promulgarem. Este respeito deve ter-se em conta de uma espécie de culto: em mandando a lei, emudeçam todos. Mas como exigir de gente sensata submissão tão inteira aos textos glosados de tantos códigos carcomidos, ou àqueles produtos indigestos (…) que vão saindo dos Senados modernos, cevadores de prelos cansados, onde as leis se fabricam com a facilidade e rapidez das chitas [tecidos] de Manchester? A multiplicidade das leis é um verdadeiro ônus para a sociedade, e de ordinário corre a mania legislativa a parelhas com a decadência de um Estado…”. [1]
Este é o tema bem abordado por Michel Temer no artigo a seguir. O texto promove o bom senso e foi publicado pela primeira vez em 1997. É aqui reproduzido do livro “Democracia e Cidadania”, Michel Temer, Malheiros Editores, SP, 2006, pp. 79-81.
(Carlos Cardoso Aveline)
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Os Poderes do Estado e a Cidadania
Michel Temer
O País tem dado avançados passos nos rumos da cidadania. São exemplos as manifestações que a sociedade, por meio de suas entidades, tem realizado nos últimos tempos. São exemplos as cobranças do povo sobre os poderes constituídos. O Poder Legislativo, em função de sua identidade como tuba de ressonância das aspirações nacionais, é dos mais cobrados. Questiona-se, frequentemente, sobre sua lentidão e formas de atuação.
Todos concordamos com que o Legislativo, para ser eficiente, há de ser ágil. Afinal, as funções legislativas precisam acompanhar a dinâmica do desenvolvimento e a premência das demandas sociais. Ocorre que a eficácia do Poder Legislativo tem se medido pelo número de leis que produz, o que é maneira enviesada de analisá-lo. Como se fosse uma fábrica: tantas caixas produzidas, tantas toneladas de produtos manufaturados. A quantidade, não a qualidade, é o critério que tem sido usado para a avaliação do Legislativo. Infelizmente, é assim nossa cultura política. E dessa visão não escapam os meios de comunicação. Basta uma convocação extraordinária para se deparar com a indefectível pergunta: quantos projetos foram votados?
Poucos indagam se os debates avançaram, se foram esclarecedores, se indicaram novos caminhos. Nada. Importa, repito, especialmente a quantidade. Esta concepção tomou conta até dos parlamentares. Todos querem produzir, votar, aprovar. Com tal acervo, o País se enche de novas leis. Umas sobre as outras. Como lembra o Deputado Bonifácio Andrada, as tecnocracias, nos regimes autoritários, pouco se incomodavam em saber se havia ou não texto legal autorizador de medida executiva que se pretendia tomar. Por isso, legisle-se. Leis sobre leis. Leis que, no seu artigo final, registram, em técnica legislativa pouco esclarecedora, o tradicional “revogam-se as disposições em contrário”.
Não se costuma indicar, na nova lei, quais as disposições revogadas ou mesmo artigos de leis esparsas que teriam perdido sua eficácia em face do novo texto legal. Bem por isso, o Deputado Ibrahim Abi-Ackel lembra que os Tribunais gastam tempo e rios de tinta discutindo se a lei ou o dispositivo tal ou qual está ou não revogado. Essa ânsia legiferante, com o dispositivo revogador e genérico, gera consequências deletérias para a boa distribuição da justiça. Dificulta e retarda as decisões judiciárias, faz nascer sentenças contraditórias e perturba o trabalho do advogado que, no emaranhado legislativo, pode invocar leis ou preceitos não mais vigorantes. Agride, portanto, o princípio da segurança e certeza jurídica, que dá ao cidadão firmeza na postulação de seu direito. Dificulta, já se vê, o acesso do indivíduo ao Judiciário.
Poder Legislativo, portanto, não é nem pode ser fábrica de leis. Há de ser, muitas vezes, ao lado de sua função fiscalizadora, o sistematizador da legislação. Por conseguinte, ao invés de fazer leis, há de desfazê-las por inteiro. Isto constitui um trabalho de sistematização. Daí porque instituímos Grupo de Trabalho integrado por 25 parlamentares, os quais contarão com assessoria para redigirem documentos de reordenamento jurídico. O objetivo, primeiramente, é reduzir o número de leis; em segundo lugar, revogar expressamente textos legais anteriores, com indicação clara das leis que foram extintas.
No tocante ao Executivo, a sistematização é muito oportuna. Cabe lembrar que as demandas sobre a administração se tornam cada vez mais agudas, em um cenário de fortes exigências, críticas dos meios de comunicação, transparência sobre os atos dos governos e enorme capilaridade das informações. Para atender as necessidades em setores básicos, como educação, segurança, saúde, o Executivo carece do amparo de uma legislação enxuta e harmônica, capaz de lhe conferir melhor operacionalidade e maior agilidade. Farto contencioso se abate sobre o Executivo, em parte resultante do cipoal jurídico que atravanca a administração.
O espírito da cidadania, que se espraia pela Nação, também abrange as demandas sobre o Judiciário. Cobra-se dele maior agilidade nas decisões. Conquistas já foram obtidas com os juizados especiais, cíveis e criminais, todos orientados para evitar os recursos alongadores dos estágios na Justiça. O aperfeiçoamento do sistema normativo certamente contribuirá para reduzir a maléfica e crescente litigiosidade social. Além disso, propiciará acesso mais rápido do povo ao Poder Judiciário. Como se vê, com tudo isso ganha a cidadania.
O entrosamento social será maior. Ao receber a visita dos líderes do MST, ouvi de seu coordenador, João Pedro Stédile, a queixa de que os trabalhadores rurais não querem apenas terra. Querem condições para cultivá-la e comercializar os produtos. Lembrei que grandes e pequenos produtores também pretendem do governo condições semelhantes. Não seria o caso de colocarmos todos numa mesa para buscar-se solução que satisfaça a todos? É possível, sim, a integração dos interesses sociais. O País espera que os parceiros do desenvolvimento se unam e discutam, conjuntamente, suas questões. E para que esta meta seja alcançada, tornam-se imprescindíveis a simplificação e a harmonização de nossas leis.
NOTA:
[1] “A Liberdade e a Legislação Vistas à Luz da Natureza das Cousas”, Frederico Francisco de Figanière, Petrópolis, Typographia de Bartholomeu Pereira Sudré, Rua do Imperador, n. 4, 1866, 200 pp., ver p. 93. (CCA)
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