Um Testemunho Pessoal Sobre Armando Sales
Murillo Nunes de Azevedo
O teosofista Armando Sales, em 1946 e já numa idade madura
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Nota Editorial de 2017
Armando Sales assumiu a presidência
da Sociedade Teosófica no Brasil em
novembro de 1946 e permaneceu no cargo
quase três décadas. No início do texto a
seguir, Murillo Nunes de Azevedo narra fatos
do final de 1975. Haviam passado pouco menos
de 30 anos desde a posse de Sales: um ciclo
de Saturno. Murillo assumira recentemente
o cargo de presidente, transmitido por Armando.
O artigo é reproduzido da revista “O Teosofista”,
edição de janeiro-março de 1976, pp. 3-5. Dividimos
alguns parágrafos maiores para facilitar a leitura.
No início do texto, Murilllo se refere ao primeiro
centenário da fundação do movimento teosófico (1875-1975).
(Carlos Cardoso Aveline)
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“Um pouco de terra! Nada mais que isso”.
Foi esse o estranho pedido que nosso Irmão Armando Sales nos fez antes que partíssemos para a Índia, onde iríamos assistir à Convenção do Centenário.
A terra negra, igual a todas as terras, foi colhida às margens do rio Adyar, junto ao Jardim da Recordação, onde repousam as cinzas dos antigos dirigentes da Sociedade Teosófica.
Amanhecia. O sol começava a reluzir nas pequenas ondas do rio. Um leve nevoeiro envolvia a paisagem. Pássaros de cores vivas misturavam-se aos corvos. Uma paz indefinível envolvia tudo.
Enquanto, curvados, recolhíamos a terra, sentíamos que algo era diferente. O simbolismo do gesto transfigurava o momento. A terra ensacada em plástico seria transportada por milhares de quilômetros para ser misturada à terra brasileira do Centro RAJA, em Itapecerica da Serra.[1] Interfusão de grãos; fusão de espírito. As águas do rio Adyar, passando rápidas, misturando-se ao mar. Depois, termina o Congresso, e nosso grupo retorna ao Brasil cheio de lembranças.
Dia 6 de janeiro [de 1976], em S. Paulo. Armando Sales, muito doente, está à nossa espera. Sorridente, como sempre, apesar de todo o sofrimento. Para ele, o trabalho da Sociedade Teosófica está em primeiro lugar. Somos interrompidos pelo enfermeiro que vai aplicar-lhe uma dose maciça de medicamento. Suas veias estouram, pois já não suportam mais tantas picadas. Armando sorri, e continua falando; falando sobre Teosofia, sobre o trabalho no Brasil. Fica feliz com as notícias e fotografias mostradas. Sinto que está sentindo dores, pois toma rapidamente um comprimido vasodilatador. Nada o abate! Inúmeras vezes cai, ergue-se e começa a trabalhar; a planejar.
A noite avança, enquanto à volta da mesa ele, Cora [Sales] e eu discutíamos o trabalho. Cheio de sono, proponho interromper a conversa para voltarmos ao assunto no dia seguinte. A noite passa rápido para mim, e o dia 7 de janeiro amanhece com S. Paulo banhada de sol. Às sete da manhã, enquanto esperávamos que Armando saísse do banho, eu e Bruna discutíamos seu caso. A posição, entretanto, é insustentável. Tudo foi feito pela medicina. Procuro transmitir um pouco de ânimo a Bruna, sua admirável companheira, no sentido de tentar um tratamento nos Estados Unidos. Quem sabe, numa clínica especializada? Dessas de que se ouve falar e que dizem que fazem milagres.
Armando chega, impecável no seu roupão. Sorri, e senta-se à mesa do café. Vou direto ao assunto. Faço um apelo. Tento todos os recursos. É possível que já existam novos medicamentos. Armando sorri, limitando-se a observar: “Não adianta nada, eu sei!” E muda imediatamente de assunto. Volta a tratar da programação do Centro Raja, dos planos para receber o Irmão Coats, em maio. Levanta-se, e mostra suas grossas pastas de correspondência sobre Teosofia. Fala das reformas que pretende realizar para melhorar o trabalho e, também, dos problemas que enfrenta no tocante ao pessoal… Depois, como num verdadeiro ritual, vamos ouvir música. É novamente o maestro inigualável no controle dos seus sofisticados equipamentos de som; é um “gournet” da Música. Escolho, para ouvirmos, duas peças de Scriabin: um concerto para “Piano de Orquestra”, e o “Poema do Fogo”.[2]
Armando regula cuidadosamente os controles e num cassete começa a gravar as peças que me vai dar de presente. Ambos calados, mergulhamos na contemplação dos sons. Observo-o cuidadosamente: está tranquilo, olhos fechados, plenamente atento à música. Sinto, então, uma enorme e indefinida tristeza, como se aquele momento, aquela extraordinária companhia, viessem a ser desfeitos. O concerto, porém, evolui rapidamente. Numa cintilante configuração, o piano funde-se à orquestra e termina num êxtase. Alguém vem avisar que, em baixo, há um carro à minha espera. Despeço-me de todos e Armando, como sempre, leva-me até a porta, abraça-me fortemente e beija-me nas faces. Sinto um nó na garganta, que disfarço entrando no elevador. Num relance, vejo a face amiga e sorridente do meu Irmão Armando por entre a porta que se fecha. Depois, a vida. A vida de todos os dias.
No dia seguinte, 8 de janeiro, no Rio, às 14 horas, na esquina da Rio Branco com Almirante Barroso, sinto uma profunda tristeza sem a menor razão. O sinal fechado, carros passando velozmente, gente de faces crispadas à espera, e eu encostado a um poste sem saber porque sentia vontade de chorar. Ao chegar ao escritório, recebo a notícia: Armando tinha falecido há poucos instantes. Depois, como num filme, toda a sequência normal desses momentos. Os parentes, os amigos, os Irmãos, o velório, o Crematório em Vila Alpina, numa clara manhã cheia de vento.
Uma semana depois, no Centro Raja, numa cerimônia profundamente tocante, as cinzas de Armando Sales são misturadas com a terra negra de Adyar no Jardim da Amizade. Compreendi, então, seu pedido: “Um pouco de terra! Nada mais que isso!”
Armando Sales. Um homem. Um símbolo.
Uma coluna grega numa paisagem cheia de sol.
Firmeza. Sinceridade. Beleza. Harmonia.
Armando, meu amigo, o irmão que não tive.
Ninguém chora a tua morte
pois não podemos lamentar o inexistente.
Sentimos tua falta como no deserto
a sombra amiga.
Ficou teu exemplo, a tua obra,
o teu amor pelo Trabalho verdadeiro,
a tua certeza da presença dos Mestres de Sabedoria
a cujos pés chegaremos, um dia.
A doença, o sofrimento, as injustiças pessoais,
nada importa, pois tudo passa.
Um pouco de terra é a única coisa que fica!
Ela é o símbolo da base em que tudo deve repousar,
o ventre onde nascemos e para onde retornaremos.
Símbolo do eterno.
Presença mansa que conforta e anima.
Luz acesa de um exemplo.
O rio do tempo continua imóvel,
correndo,
correndo…
NOTAS:
[1] Centro Raja: local de retiros e seminários da Sociedade Teosófica, situado no município de Itapecerica da Serra e próximo à capital de São Paulo. (CCA)
[2] O músico russo Alexander Scriabin (1870-1915) foi fortemente influenciado pela teosofia de Helena Blavatsky e compôs músicas com base na obra “A Doutrina Secreta”. Veja o livro “Helena Blavatsky”, de Sylvia Cranston, Ed. Teosófica, Brasília, 1997, pp. 535-536. (CCA)
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