Construindo as Bases da Ajuda Mútua
Carlos Cardoso Aveline
“Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar
condições para a sua própria produção ou sua construção.” [1]
(Paulo Freire)
É inevitável: o caminho da sabedoria interior envolve situações coletivas em que surge a questão do poder, da organização, dos relacionamentos interpessoais e das decisões em grupo. O mesmo vale para ações altruístas na área social e ecológica.
Tudo seria fácil se os aprendizes espirituais ou ativistas sociais fossem todos caminhantes cegos, obedientes ou fracos. Se eles se limitassem a seguir ordens mecanicamente, como parte de um ritual sem vida. No entanto, as pessoas altruístas são frequentemente dotadas de iniciativa própria e criatividade, preferindo ser responsáveis por si mesmas.
Como se pode organizar, então, uma estrutura de poder solidária e coerente, reunindo pessoas fortes e independentes?
A ideia-chave, aparentemente simples, está no fato de que a verdadeira solidariedade respeita a autonomia de cada um.
A experiência prática dos últimos milênios mostra que a tarefa de criar estruturas coletivas saudáveis não é fácil. Felizmente, hoje temos elementos para que essa meta possa ser alcançada sem grandes complicações, inclusive nos grupos de estudo e vivência de filosofia esotérica. De fato, o segredo do carma coletivo está nas estruturas de relacionamento.
Do ponto de vista psicológico, a busca de poder coercitivo – o poder de dominar pessoas – é um mecanismo doentio. Há um outro tipo de estrutura de poder que é criativo e solidário. O oposto do poder neurótico e manipulador não é a ausência de poder e de liderança. Eliminar os mecanismos de poder é um sonho tão equivocado quanto a própria ambição de poder pessoal autoritário. A liderança, o ensino e o aprendizado são funções naturais da vida.
A alternativa saudável à dominação autoritária não é a ausência de poder, mas sim o poder solidário, a estrutura que se organiza para facilitar a ajuda mútua. Toda estrutura gera carma, isto é, produz consequências, de um modo ou de outro. E as estruturas solidárias geram carma positivo.
1. Manipulação Não é Poder, e Poder Não é Manipulação
Em um livro significativamente intitulado “O Medo à Liberdade”, o pensador e psicólogo Erich Fromm escreveu a respeito da ilusão do poder pessoal sobre outros indivíduos:
“…Em uma acepção psicológica, a ânsia de poder não se origina da força, mas da fraqueza. Ela é a expressão da incapacidade do eu individual para ficar sozinho e viver. É um esforço desesperado para conseguir força simulada quando se tem falta de força autêntica.”
E Fromm prosseguiu:
“A palavra ‘poder’ tem um duplo sentido. Um é a posse de poder sobre alguém, a capacidade de dominá-lo; o outro sentido é posse de poder para fazer algo, é ser capaz, é ser potente. Este último nada tem a ver com dominação; ele exprime maestria na acepção de senso de capacidade. (…) Assim, poder pode significar uma das duas coisas: dominação ou potência. Longe de serem idênticas, elas se excluem mutuamente. A impotência, empregando o termo (…) a todas as esferas das potencialidades humanas, produz o impulso sádico de dominação. Na medida em que o indivíduo é potente, isto é, apto a realizar suas potencialidades com base na liberdade e integridade de seu eu, ele não precisa de dominar nem tem sede de poder. O poder, na acepção de dominação, é a perversão da potência.” [2]
Assim, o poder que temos que despertar e compartir, nos grupos de estudo e vivência de filosofia esotérica, é o poder do coração, o poder da criatividade, e da liderança solidária.
A tarefa será mais fácil se tivermos a paciência de, ao mesmo tempo, identificar e desarticular os mecanismos ou padrões antigos de impotência pessoal que alimentam a busca doentia de poder sobre os outros. O momento atual da humanidade abre espaço para novos tipos de relações humanas, capazes de empregar o poder solidário e a liderança da ajuda mútua. E nada nos proíbe de fazer parte desse processo.
Esbocei uma teoria dos conflitos na parte um do livro “Três Caminhos Para a Paz Interior”.[3] A obra inclui um capítulo sobre a luta entre bem e mal (capítulo quatro do livro), com base no que aprendi durante as últimas décadas.
O capítulo 11 do mesmo livro, intitulado “A Psicanálise das Religiões”, examina os mecanismos de liderança em associações espiritualistas e teosóficas e está disponível em nossos websites associados. Por outro lado, abordo o tema do poder solidário no livro “O Poder da Sabedoria”. [4]
Há muito por fazer nessa direção.
Estabelecer as relações humanas sobre a base da boa vontade mútua é tarefa essencial para a construção de padrões vibratórios adequados. A humanidade dispõe hoje de uma oportunidade cármica ilimitada. Essa potencialidade sagrada aguarda apenas pelo tipo certo de abordagem, da nossa parte, para que possa desenvolver-se. É tarefa dos aprendizes da sabedoria esotérica construir gradualmente as estruturas sutis necessárias para que a energia da boa vontade deixe de ser desperdiçada em skandhas negativos, ou hábitos cegos do passado que reproduzem sofrimento. Deste modo um mundo melhor finalmente surgirá.
Devemos expandir a ciência sociológica da solidariedade: é necessária uma maneira fraterna de produzir e viver. O modo cooperativo de produção torna-se natural e possível quando os indivíduos definem como meta pessoal exigir mais de si mesmos do que dos outros, e quando decidem controlar mais a si mesmos que ao mundo externo.
2. A Dose Certa de Questionamentos Ajuda o Trabalho
A questão da liderança com transparência é decisiva em um grupo voltado para a aprendizagem espiritual. Os eus inferiores não ficam de fora da caminhada espiritual ou da ação altruísta. As emoções pessoais são o grande campo de batalha no esforço do aprendizado.
De um lado, as estruturas de poder baseadas na idealização cega de líderes não nos interessam. De outro lado, as estruturas coletivas baseadas na desconfiança e na competição tampouco são aceitáveis. Daí a necessidade de exercermos uma boa dose de criatividade. Devemos criar grupos em que possamos evitar, serena e conscientemente, a formação de uma casca externa de bondade espiritual que fique encobrindo e camuflando sentimentos internos de ódio e inveja. Podemos ter o privilégio de discutir abertamente este desafio, e exercer o poder da sinceridade solidária.
Uma das acepções da expressão fraternidade universal é que ela deve abrir-se em relação a todos os seres, tanto em direção ao mais sábio como em direção ao mais inexperiente, em direção ao mais devocional e em direção ao mais cético, e assim por diante. Devemos construir espaços de convivência em que os recém-chegados se sintam bem, e compreendam o que ocorre, ao mesmo tempo que os antigos estão processando problemas mais avançados. A construção de um espaço com estas características é uma tarefa alquímica. Aprendemos a realizá-la enquanto trabalhamos junto a um público amplo e variado, no qual todas as pessoas têm níveis de informação e tipos de motivação muito diversos.
Por exemplo, há várias razões pelas quais um indivíduo moderadamente cético deve ser bem acolhido entre estudantes de filosofia oriental ou esotérica.
Em primeiro lugar, ele apreciará a sinceridade básica do modo de funcionar do grupo. Em segundo lugar, sendo um bom cético, ele duvidará da sua própria descrença interior no caminho espiritual, e admitirá a possibilidade de que a sua negação da espiritualidade seja ela própria uma forma de dogmatismo cego.
A presença de um ou dois céticos respeitosos e éticos em um grupo de metas altruístas será útil porque servirá para testar o grupo, evitando idealizações e tendências a crer cegamente.
Em qualquer pessoa, a dose certa de ceticismo evita a cegueira. Mas uma dose excessiva de dúvidas interrompe antahkarana, a ponte entre o eu inferior e o eu superior. Antahkarana produz confiança em si mesmo, confiança na vida, confiança no outro e uma certeza do caminho espiritual, apesar das armadilhas que o peregrino precisa enfrentar enquanto avança.
É bom lembrar que a palavra entusiasmo vem de en-thousiasm. Trata-se de uma variante de entheos, que significa ter um deus dentro de si (Webster’s Encyclopedic Unabridged Dictionary, edição de 1989).
Teosoficamente, entusiasmo significa estar em contato com a energia divina da alma imortal. Quer dizer que alguém está agindo sob a inspiração de um raio da luz do eu superior, ainda que, em meio a um mundo cheio de ilusões, a luz do entusiasmo deva ser combinada com a luz do discernimento e regulada pelo bom senso. O entusiasmo é um maná que desce dos céus, um orvalho sagrado, um presente de antahkarana.
O excesso de dúvidas e o negativismo interrompem o processo necessário para que o eu pessoal se abasteça a cada instante da alegria de viver e da certeza da bênção, dois sentimentos que residem eternamente na alma imortal.
Se alguém já conhece o grupo, deve ter confiança na caminhada coletiva. Caso contrário estará perdendo seu tempo. Quem descrê do trabalho de uma associação mesmo depois de conviver com ela algum tempo deve ter a autoestima necessária para afastar-se dali e ir fazer outra coisa que pense ser mais correta.
Um cético não tem direito de boicotar o avanço do grupo, tratando de produzir desconfiança entre as pessoas ou destruir o entusiasmo indispensável a toda caminhada. Porém as suas chamadas respeitosas à cautela ou ao exame autocrítico serão úteis. Quando alguém mostra de modo claro e documentado os erros de uma instituição ou da literatura que ela adota, deve haver a coragem coletiva de colocar a verdade acima das conveniências de curto prazo, e reconhecer o mérito da crítica honesta. Uma associação eficiente considera a verdade mais importante que o nível superficial dos seus interesses corporativos. Os seus líderes sabem que afastar-se da verdade é autodestrutivo tanto para o indivíduo como para a comunidade.
3. A Teoria do Valor pelo Trabalho, e o Valor do Conhecimento
Uma teoria do poder nos grupos humanos depende de uma teoria do valor. Toda forma de poder coletivo se estrutura em torno do que é considerado muito valioso.
Três fatores incorporam valor a tudo o que é relativo ao caminho espiritual, e elas são fontes de poder e liderança benéficos. Trata-se de:
a) conhecimento profundo;
b) trabalho intenso; e
c) intenção solidária.
Os três itens são indispensáveis para colocar uma associação espiritualista em movimento, ou preservar o trabalho dela.
É a combinação de conhecimento, trabalho e intenção solidária que ilumina o conceito, também central, de democracia. Uma instituição humanitária e filosófica deve ser uma democracia de trabalho, uma democracia de conhecimento e uma comunhão de intenções. Devemos saber que conhecimento acumulado é igual a trabalho acumulado, mas devemos lembrar também que conhecimento acumulado, quando verdadeiro, significa capacidade e disposição para trabalhar de um modo essencialmente democrático.
Em uma “democracia interior”, não é necessário que todos tenham igual peso em cada decisão a ser tomada. Os níveis de conhecimento, esforço acumulado e experiência de cada um são muito diferentes. A diversidade é importante, e ignorar as diferenças torna uma associação superficial, desperdiçando experiência e sabedoria.
Uma democracia essencial é movida pelo sentimento de comunhão. Nela os que têm mais conhecimento em geral trabalham mais e mais intensamente que outros, porque libertaram-se de modo mais profundo de preocupações pessoais e dedicam uma parcela maior da sua vida à busca daquela sabedoria que só pode ser encontrada através do altruísmo.
Porém, os mais “novos” no caminho devem decidir por sua própria vontade se darão um certo peso especial ao testemunho dos mais “antigos”. O testemunho da experiência acumulada tende a ser extremamente útil para os mais novos e para o trabalho comum, especialmente se puder ser testado na prática por todos.
A relação entre colegas de caminho tem como base a confiança mútua, e no entanto a independência individual é preservada. A autorresponsabilidade é tão importante quanto a prática da ajuda mútua. Este princípio universal está implicitamente presente em toda relação humana saudável. O pai de uma criança recém-nascida sabe que seu filho é fundamentalmente igual a ele, e a mãe percebe a mesma realidade. A criança necessita de ajuda e proteção, mas tem a mesma dignidade e independência interior que um adulto.
Se a “democracia” fosse um obstáculo para a liderança dos mais sábios, o grupo adotaria um padrão inferior de comportamento, e a sua força seria igual à força do mais inexperiente dos seus membros, ou do mais cético deles. Uma comunidade estruturada em torno de um conhecimento deve ser liderada por aqueles que têm mais acesso, teórico e prático, ao conhecimento.
No entanto, não basta que o grupo aceite as orientações surgidas da visão de longo prazo e da experiência acumulada. Para que a liderança tenha uma legitimidade durável, ela deve ser autorresponsável, transparente, aberta a questionamentos sinceros, e verificável. Ela deve buscar a formação de novos líderes. Com o tempo, a influência de um líder experiente se torna cada vez mais filosófica e se refere a um número menor de procedimentos externos – salvo em momentos críticos ou decisivos.
4. A Força de Uma Associação Não Está na Forma Externa
A ideia de democracia espiritual sugere um tipo de líder que pensa no crescimento dos outros, e não em outra coisa. [5]
Essa liderança só pode existir e manter-se pela constante renovação do seu reconhecimento por parte dos membros do grupo, e não é garantida por cargos, estatutos ou aspectos exteriores da associação, embora eles tenham seu papel. A força de uma agrupação não está no número de membros ou seguidores, ou na eventual posse de bens materiais.
A força de uma associação filosófica está na clareza e na nobreza das suas metas, no poder da verdade presente em seus ensinamentos, na eficiência dos seus métodos, na intensidade do seu trabalho, no exemplo dado pelos seus líderes e associados experientes, e na confiança recíproca que une seus associados e simpatizantes.
É claro, também, que os estudantes devem testar constantemente o ensinamento que estudam, verificando a cada momento se ele é confiável. Todo dogma cego é pior que inútil. Cabe confiar com discernimento, e, sobretudo, cabe ser confiável, ampliando as bases da sinceridade. Quando alguém confia profundamente em si mesmo, é confiável para os outros. Porém essa é uma conquista, e não algo necessariamente fácil para todos. Os seres humanos estão em construção. O progresso espiritual é mais lento do que muitos desejam.
Assim como existe um medo à liberdade, há um medo de confiar. É um medo tríplice de confiar em si, nos outros e na vida. Se confiarmos mantendo os olhos abertos, teremos decepções e derrotas, mas iremos adiante e passaremos por todas elas, aprendendo com nossos erros. Quando não confiamos, em compensação, temos o pior fracasso e a única derrota, que é não tentar, não experimentar, não aprender. A lei da evolução por esforço consciente é a lei do ciclo formado por tentativa, erro, observação do erro – e nova tentativa.
A força de uma associação filosófica de visão humanitária está na necessidade de sabedoria que mora no coração humano.
O poder criador de um grupo de estudantes é resultado de um “contrato de trabalho coletivo” que une corações e mentes em um nível não-verbal da consciência. Esse acordo entre almas deve expressar-se no mundo externo de um modo que possa ser observado, pensado e discutido por todos.
O pensamento inspira a ação e se reflete nela. Entre as metas da Loja Independente de Teosofistas e de outras associações filosóficas está a de despertar e fortalecer, na vida das pessoas, a luz da Confiança com Discernimento.
NOTAS:
[1] “Pedagogia da Autonomia”, Paulo Freire, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1998, 165 pp., ver p. 52.
[2] “O Medo à Liberdade”, Erich Fromm, Ed. Guanabara-Koogan, RJ, 235 pp., 14ª edição, ver p. 133.
[3] “Três Caminhos Para a Paz Interior”, Carlos Cardoso Aveline, Editora Teosófica, Brasília, 2002.
[4] “O Poder da Sabedoria”, Carlos Cardoso Aveline, Editora Teosófica, Brasília, 2001, terceira edição. Veja o capítulo 13, “A Liderança Natural”.
[5] Veja em nossos websites associados os artigos “Um Por Todos e Todos Por Um” e “Um Segredo do Trabalho Teosófico”.
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Em setembro de 2016, depois de cuidadosa análise da situação do movimento esotérico internacional, um grupo de estudantes decidiu formar a Loja Independente de Teosofistas, que tem como uma das suas prioridades a construção de um futuro melhor nas diversas dimensões da vida.
Os princípios gerais estabelecidos no texto “Quatro Ideias Para Um Poder Solidário” são seguidos pela Loja Independente em relação a questões organizativas e processos de tomada de decisão.
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