Como a Tradição Mística Ensina
a Fortalecer as Decisões Espirituais
Carlos Cardoso Aveline
Nascido em 21 de agosto de 1567, Francisco de
Sales é considerado o patrono dos escritores e redatores
Grande parte dos estudantes experientes de teosofia fazem, em algum momento, um voto solene. Decidem perante as suas consciências que irão dedicar suas vidas a um ideal nobre, ao seu próprio aperfeiçoamento interior, e à busca da sabedoria.
A força da decisão tomada passa, então, a protegê-los.
São muitos os peregrinos que renovam este voto a cada ano. Eles observam com a devida calma a necessidade do aperfeiçoamento da decisão tomada. Alguns inclusive estudam o processo da sua renovação regular, que fortalece a determinação de vencer.
Uma Filosofia Interdisciplinar
A verdadeira sabedoria é universal. Sob diferentes roupagens, a teosofia está presente nas grandes religiões da humanidade. Descontadas as diferenças de vocabulário, as várias tradições culturais podem aprender umas com as outras, enriquecendo-se mutuamente. Veremos agora um exemplo deste fato, enquanto estudamos o processo de renovação do compromisso sagrado.
O pensador francês Francisco de Sales está entre os santos católicos relativamente próximos da filosofia teosófica. Ele escreveu um livro valioso para quem deseja aprofundar o seu compromisso pessoal com a sabedoria divina. [1] Há fortes motivos para renovar e fortalecer com regularidade a decisão de trilhar o caminho do espírito.
Enfrentando a Ignorância Materialista
O caminho da alma contraria a lógica do mundo. Ele avança na contramão dos consensos sociais baseados no poder material, na rotina e na aparência. Toda decisão de buscar a sabedoria eterna é constantemente questionada por grande parte dos que nos rodeiam. E o mais interessante: uma parte da alma do próprio peregrino resiste ao progresso espiritual e boicota o indispensável processo de autopurificação. Esta resistência é em boa parte subconsciente.
À medida que é desafiado por obstáculos, o peregrino vence pela persistência, pela auto-observação, e pela renovação constante do seu compromisso.
Para alguns, o crescimento da vontade espiritual ocorre de modo espontâneo, no plano subconsciente. Para outros, ele é pensado e até planejado, e assim adquire força. O constante aperfeiçoamento do propósito elevado constitui uma ferramenta pela qual o peregrino conhece a si mesmo e transmuta para melhor tudo o que a sua alma tem de terrestre e de celeste, de ignorância e sabedoria, de infelicidade e contentamento. Encontramos lições sobre este tema tanto na natureza como na vida diária.
Os pássaros, por exemplo, são sempre símbolos da alma humana. O espírito deve erguer-se como as aves se erguem ao voar. E há dificuldades para isso. Segundo Francisco de Sales, a fragilidade da nossa natureza inferior “puxa sempre para baixo” a alma. Por causa disso, é preciso que a alma “se eleve muitas vezes para cima à viva força de resolução”. E explica: “as aves caem muito depressa ao chão, se não multiplicam as voltas e os movimentos das asas para levantar o voo.”
Há outras maneiras simbólicas de mostrar por que é preciso renovar o compromisso. Nascido em 1567, Sales toma como exemplo os relógios do seu tempo, e faz deles um símbolo dos nossos estados de consciência.
Refletindo diante dessa ideia geral, o teosofista afirma:
“O relógio da alma não deve ‘atrasar’- isto é, fugir dos seus deveres – nem ‘adiantar’, sendo tomado pela impaciência. Precisa ter pontualmente o mesmo ritmo que a lei universal, conforme o movimento do Sol no céu, que corresponde ao trabalho do Logos solar no plano do espírito. Mas todo relógio necessita cuidados.”
Sales escreve:
“Não há relógio, por bom que seja, que não precise que lhe deem corda duas vezes por dia, de manhã, e à noite; e depois, além disso, é preciso ao menos uma vez por ano desarmá-lo de todas as peças, para tirar a ferrugem que ganhou, endireitar as peças torcidas e consertar as que estão estragadas.” Assim, “aquele que tem verdadeiro cuidado com o seu estimado coração deve pô-lo em Deus [estabelecê-lo na consciência divina] à noite e de manhã”.
Segundo Sales, o peregrino deve observar o relógio interior, sua alma. Cabe endireitá-lo e consertá-lo, “e finalmente, ao menos uma vez por ano, deve desarmá-lo e examinar em detalhe todas as peças, isto é, todos os seus afetos e sentimentos, a fim de reparar cada defeito que nele possa haver”.
“E como o relojoeiro unta com algum óleo delicado as rodas, as molas e todas as engrenagens do seu relógio para que os movimentos se façam mais suavemente, e para que ele fique menos exposto a ganhar ferrugem, assim a pessoa devota, depois de desarmar o seu coração [ou examinar o seu estado de consciência], para o renovar bem, deve untá-lo com os sacramentos”. [2]
Os sacramentos, para o teosofista, são, por exemplo: 1) agir corretamente; 2) observar a sua própria conduta desde o ponto de vista da alma espiritual; 3) estudar e contemplar as verdades universais; 4) seguir o exemplo e o ensinamento dos grandes sábios; 5) manter uma relação correta e fraterna com seus colegas de aprendizado; e 6) trabalhar para que a humanidade no futuro seja mais sábia.
No mesmo trecho que estamos examinando e trazendo para a teosofia, Francisco de Sales prossegue:
“Este exercício reparará as tuas forças enfraquecidas com o tempo, aquecerá o teu coração, fará reverdecer os teus bons propósitos e florescer as virtudes do teu espírito.”
A filosofia esotérica afirma o mesmo. Também para a teosofia a análise detalhada dos acontecimentos da alma deve ocorrer ao lado da elevação mística e contemplativa.
A visão do detalhe e a compreensão do todo alimentam uma à outra. Com dois pés o ser humano caminha na direção da sabedoria: um pé é o estudo dos eventos externos e fragmentários; o outro, a compreensão da unidade silenciosa de tudo o que existe.
A cada semana, a cada mês, uma vez por ano, o peregrino espiritual pode fazer pausas maiores ou menores para avaliar a sua busca da meta sagrada. Os três ciclos são importantes, assim como o ciclo diário.
Para Francisco de Sales, um ponto essencial a levar em conta nesta tarefa é o abandono e a rejeição dos erros morais e éticos graves. O peregrino escolheu o caminho da autopurificação. Optou pelo autocontrole no rumo da plenitude. Todo teosofista pode e deve avaliar o grau da sua pureza na rejeição dos sete “pecados capitais”, seguindo a lista clássica definida por S. Tomás de Aquino.
As Sete Virtudes Capitais
A palavra “pecado”, no entanto, deve ser esvaziada de todo conteúdo supersticioso. Significa apenas um erro moral sério; uma falha grave em autocontrole e autodisciplina, algo que provoca resultados potencialmente desastrosos para a alma desinformada.
Vejamos a lista dos erros morais mais importantes, definida por Tomás de Aquino:
1) A soberba, o orgulho;
2) A avareza, o apego a bens físicos, a busca exagerada de riquezas materiais;
3) A inveja, ou a má vontade para com o seu semelhante;
4) A ira, a raiva, o rancor intenso;
5) A luxúria, ou seja, a imoralidade sexual;
6) A gula, isto é, o exagero na comida e na bebida; e
7) A preguiça, a inércia, a ausência de força de vontade para viver uma vida correta.
Para evitar estas formas de fracasso, o peregrino teosófico fortalece em si mesmo as sete qualidades opostas:
1) A humildade, a simplicidade;
2) A generosidade, o desapego em relação a bens físicos, a atitude moderada diante de riquezas materiais;
3) A boa vontade para com o seu semelhante, o contentamento diante da vitória dos seus amigos;
4) Os sentimentos respeitosos e fraternos;
5) A moderação na vida afetiva e no casamento;
6) Alimentação moderada e abstenção da gula; e
7) Disposição para trabalhar intensamente, força de vontade para viver uma vida correta.
O estudante deve avaliar com que firmeza evita hoje os erros morais mais sérios e com que força está estabelecido nas virtudes positivas opostas a eles.
Cabe tomar providências práticas para melhorar a sua vida nos aspectos em que isso for necessário.
Cumprida esta etapa, o peregrino pode ir à frente no processo da auto-observação e da renovação dos seus votos.
Consagrando a Vida a um Ideal
Francisco de Sales recomenda avaliar a firmeza maior ou menor com que o peregrino está consagrando a sua vida ao contato com o mundo divino. [3]
No caso do estudante de filosofia esotérica, um aspecto decisivo do compromisso é buscar o bem da espécie humana.
O teosofista procura construir um núcleo da fraternidade universal sem distinção de raça, credo, religião, igreja, casta, posição social, riqueza ou cor da pele. Em última instância, a noção teosófica de fraternidade universal coincide com a noção pagã e franciscana que inclui todos os seres.
As florestas são nossas irmãs, assim como as árvores e os animais. As estrelas são nossas irmãs, e podemos dizer como Francisco de Assis que o Sol e a Lua são nossos irmãos.
É possível seguir o exemplo de Santo Antônio de Lisboa e Pádua e conversar com os peixes. Certo dia, diz a lenda, Santo Antônio descobriu que os peixes o compreendiam melhor que os seres humanos.
Qual tem sido a eficiência do peregrino em sua dedicação ao mundo divino? As falhas de hoje são as vitórias de amanhã, se ele perseverar. É imenso o potencial de contentamento interior daquele que se esforça honestamente, a partir de uma visão de longo prazo da vida.
São Francisco de Sales escreve na edição em inglês da sua obra:
“Considera com quem assumiste este compromisso [sagrado]”. [4]
Vejamos a ideia desde o ponto de vista da filosofia esotérica. O peregrino adota a meta sagrada diante do seu próprio eu superior, sua alma imortal, a quem evoca como testemunha e como fonte de ajuda. [5]
Para o cristão, o compromisso é com Deus, ou com Jesus, mas Jesus e Deus neste caso funcionam como símbolos da própria alma espiritual do peregrino, do seu anjo da guarda, da sua Mônada. Implicitamente estão presentes no compromisso a potencialidade do Mestre, representada também por Jesus, e o contato natural com as divindades universais e cósmicas, simbolizadas também pela ideia de Deus.
Vejamos outro fragmento do texto de Francisco de Sales, poucas linhas mais adiante:
“Considera na presença de quem assumiste o teu compromisso”.
Usando a linguagem do seu tempo, Sales afirma que o compromisso é feito na presença de toda a hoste celestial.
A afirmação é perfeitamente realista. É totalmente verdadeira. Nada tem de supersticiosa. O compromisso tem por testemunhas todas as hierarquias “angélicas” do universo, isto é, o conjunto dos grupos hierarquizados de inteligências cósmicas que trabalham a serviço da Lei. A afirmação é tão ortodoxa em cristianismo quanto é correta em teosofia clássica. Porém o ser humano desinformado não conhece estes fatos, do mesmo modo que o indivíduo desatento, ao amanhecer, olha o céu distraidamente e não vê nele o brilho do planeta Vênus. Ou, se ainda dorme, nem sequer pensa no processo do amanhecer e na sua relação com o Sol. Durante quantos dias da nossa vida nós ignoramos por completo a existência das estrelas? No entanto, elas estão presentes.
Helena Blavatsky afirma que o ser humano contém em si mesmo a contrapartida microcósmica das mais diversas consciências sagradas do universo. Mas nem todos percebem isso como uma experiência direta. A função do peregrino está em compreender com alguma clareza em presença de Quem ele vive, afinal; e diante de Quem ele se esforça, tenta ser feliz, e faz com frequência erros desnecessários.
Tomando consciência desta presença sagrada, o aprendiz passa a perceber quem ele mesmo é: uma fagulha da Lei eterna, enterrada no barro da existência material e oculta na cegueira da etapa atual de evolução da humanidade. Esta percepção dos fatos abre as portas da aprendizagem para a alma do peregrino, mas o caminho seguirá sendo difícil e desafiante.
Os Vários Níveis de um Compromisso
Seria impossível abordar de maneira completa o tema da renovação da vontade espiritual dentro dos limites de um artigo. A meta é trazer alguns elementos para a reflexão do estudante, de modo que ele possa perceber um fato básico: a renovação não é um processo apenas verbal. Constitui um acontecimento simultaneamente físico, vital, emocional, intelectual, espiritual, e verbal. E cada um destes níveis é bastante diferente do outro.
Francisco de Sales recomenda que a autoavaliação inclua as seguintes etapas:
* O exame da alma, e do seu aproveitamento da vida espiritual.
* A observação da alma na sua relação com o mundo divino.
* O exame da relação do peregrino consigo mesmo.
* A observação do relacionamento do peregrino com os seus colegas de caminhada, com os outros seres humanos, e com a natureza.
* O exame das afeições da alma.
* A reafirmação do caráter excelente e divino da alma.
* A reafirmação do caráter excelente das virtudes espirituais.
* A contemplação dos exemplos inspiradores dados pelos sábios e pelos mestres de todos os tempos.
* A reafirmação da nossa caminhada individual e solidária. [6]
Há uma advertência: Francisco lembra que o repouso adequado do corpo e da alma é indispensável. Sem ele, fica difícil alcançar o recolhimento eficaz. [7] Em outras palavras, o teosofista deve lembrar que o desapego é fonte de sabedoria. Um ritmo de vida calmo permite que o conhecimento divino ganhe força. O descanso adequado, ao lado do trabalho correto, abre as portas do contentamento.
A experiência teosófica ensina que manter um caderno de anotações pessoais sobre a caminhada é um instrumento de grande utilidade. O registro das situações e dificuldades que enfrentamos permite ter uma visão histórica correta da trajetória. Em que aspectos o progresso foi mais intenso e profundo? Onde está, hoje, a porta para um futuro luminoso?
O sonho abstrato, a contemplação universal e a organização prática da vida precisam avançar em conjunto e com um certo grau de harmonia. O equilíbrio é dado pela presença da alma espiritual naquilo que fazemos.
NOTAS:
[1] “Introdução à Vida Devota”, de S. Francisco de Sales: livro publicado pela Diocese do Porto, em Portugal, em 1938, com 325 páginas. No Brasil, a obra está publicada pela Editora Vozes, RJ. Veja especialmente a parte cinco. Em inglês, o livro é intitulado “Philothea or an Introduction to the Devout Life” (publicado por TAN Books, 2013; Imprimatur 1942). A obra foi publicada pela primeira vez na França em 1608, e Sales revisou pessoalmente a edição de 1619.
[2] De “Introdução à Vida Devota”, de S. Francisco de Sales: livro publicado pela Diocese do Porto, em Portugal. Veja na parte cinco do livro as páginas 297-298. No Brasil, a obra está publicada pela Editora Vozes, RJ. Em inglês, o livro é intitulado “Philothea or an Introduction to the Devout Life”.
[3] De “Introdução à Vida Devota”, de S. Francisco de Sales: livro publicado pela Diocese do Porto, em Portugal. Veja a página 299, capítulo II da parte 5. Em inglês, o livro é intitulado “Philothea or an Introduction to the Devout Life”.
[4] De “Introdução à Vida Devota”, de S. Francisco de Sales. Veja a mesma página 299, capítulo II da parte 5. Em inglês, o livro é intitulado “Philothea or an Introduction to the Devout Life”. Neste trecho específico, deixo de lado o termo antigo “protestações” e adoto “compromisso”, palavra válida tanto na antiguidade como hoje: na edição em inglês, temos “pledge”, que equivale a “compromisso”.
[5] Leia o artigo “As Sete Cláusulas de um Compromisso”.
[6] “Introdução à Vida Devota”, de S. Francisco de Sales, 1938. Veja a parte 5 toda. No Brasil, a obra está publicada pela Editora Vozes, RJ.
[7] De “Introdução à Vida Devota”, de S. Francisco de Sales: Diocese do Porto, Portugal, 1938. Veja a p. 302.
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O artigo “Renovando o Compromisso da Alma” está publicado nos websites da Loja Independente de Teosofistas, LIT, desde 12 de abril de 2023.
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Pequenas Ações Práticas
* A força da teosofia depende da sua aplicação à vida diária. Reveja o texto acima. Escolha os pontos mais úteis. Registre em seu caderno de anotações aquilo que chama atenção no momento atual. Comente com amigos sobre isso: quando temos a coragem de acender uma luz que beneficia outros, talvez sejamos nós os mais beneficiados.
* A boa prática requer um esforço, e por isso mesmo fortalece a vontade.
* Imprima os textos que estuda dos websites associados: com frequência a leitura em papel permite uma compreensão mais profunda. Ao estudar um texto impresso, o leitor pode sublinhar e fazer comentários manuscritos nas margens, ligando o texto à sua realidade concreta.
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Leia mais:
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Helena Blavatsky (foto) escreveu estas palavras: “Antes de desejar, faça por merecer”.
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