O Amor é Universal e Tanto os
Sapos Como as Rãs Sabem Disso
Carlos Cardoso Aveline
Uma rã-comum (leptodactylus ocellatus),
espécie presente nos banhados do Rio dos Sinos
No começo dos anos 1980, morei numa casa de madeira numa cidade pequena da serra gaúcha, não longe de Porto Alegre. No banheiro daquela casa, procurando humidade, residiam cinco ou seis rãzinhas nascidas numa enchente. À noite, estavam sempre em casa. Pela manhã, ao abrir a pia, era preciso esperar que saíssem sem pressa alguma, descuidadamente, de dentro dos canos onde preferiam passar a noite.
De dia é que desapareciam. E só ficavam nervosas e excitadas quando o tempo estava chove-não-chove. Começavam a gritar veementemente, em coro, para que a água desabasse de uma vez. Cada vez que fechávamos a porta do banheiro, cuidávamos para que nenhuma rã fosse esmagada junto às dobradiças. E pisávamos com atenção no chão, porque a convivência era agradável.
As rãs, como as tartarugas, são objeto da minha amizade há muito tempo. Os sapos já foram legitimados, como tema literário, por ninguém menos que George Orwell, o autor de “1984”. Há em um livro desse escritor uma crônica chamada “Alguns Pensamentos Sobre o Sapo Comum”. [1] Ali o inglês descreve o ciclo de vida do animal e diz: “Mencionei a desova dos sapos porque é um dos fenômenos que sempre me chamam atenção e porque o sapo nunca é elogiado pelos poetas”.
Simpático ao anarquismo, Orwell lutou pessoalmente na guerra civil espanhola, sobrevivendo a um balaço no pescoço. Mais tarde descobriu que um mau governo de esquerda pode ser tão opressivo quanto um mau governo de direita. Orwell amava e respeitava a vida, e por isso, sem dúvida, é que observava os sapos. Eles têm uma misteriosa intensidade vital, algo que se vê com claridade quando se estuda o papel da cegonha – isto é, do amor -, na reprodução numérica desses animais.
O amor é universal e tanto os sapos como as rãs sabem disso. Em consequência, os sapos machos se concentram em locais apropriados e começam a coaxar para atrair as fêmeas. Estas, quando os óvulos estão maduros, decidem ir para a água. Então cada macho abraça uma fêmea, monta sobre ela e aperta com força o peito da moça. Assim ela acaba liberando os seus ovos. À medida que os ovos saem, o macho descarrega o seu líquido seminal para fecundá-los. Os ovos endurecem e aderem às vegetações aquáticas.
Imediatamente cada ovo se transforma num embrião. Poucos dias mais tarde sai dele uma pequena larva ou girino. Cabeça e tronco são ainda um corpo ovoide. Mas em algumas semanas esta larva, que viveu até aqui na água, se transforma. Crescem os pulmões, e ela procura águas rasas para poder engolir ar, segundo informa o livro “Zoologia Geral”, de Storer e Usinger (USP, 1971).
Na Europa, com o rigoroso inverno, os sapos hibernam. Metem-se num buraco na terra e lá ficam com o metabolismo praticamente a zero, como mortos, até a primavera. Depois de um longo inverno gelado, o sapo “tem um aspecto muito espiritual, como um místico anglicano depois da quaresma”, diz Orwell. Mas, mais tarde, o seu pensamento estará voltado totalmente para o abraço das fêmeas.
Sapos e rãs são habitantes de destaque dos banhados do rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, que sofrem contaminação industrial e doméstica, além da simples eliminação por aterro. O espetáculo infinito da vida da natureza está sendo substituído em parte pelo espetáculo da especulação imobiliária e do avanço urbano irrefletido, que trazem consigo miséria social. Mais cedo ou mais tarde haverá um novo ciclo de regeneração ética.
NOTA:
[1] O texto faz parte da edição em espanhol de uma obra de Orwell, “Cazando un Elefante”. O livro foi comprado nos anos 1970, quando morei na Argentina e no Perú. Desde 2017 o artigo está disponível nos websites associados: “Algunos Pensamientos Acerca del Sapo Común”.
000
O artigo “Um Espetáculo no Rio dos Sinos” está publicado nos websites associados desde 13 de julho de 2021. É reproduzido do jornal “Vale do Sinos”, de São Leopoldo, RS, onde foi publicado em 30 de junho de 1986. Algumas frases foram atualizadas. Título original: “Espetáculo na Bacia do Sinos”.
000
Leia também “Garça Branca, a Rainha do Rio”.
Clique para ver outros textos sobre Ecologia Profunda e Ética Ambiental.
000